terça-feira, 7 de outubro de 2014




DOMINGOS 78  E  PAULO  JOSÉ 77  –  MAIS DE MEIO SÉCULO DE AMIZADE.

Neste sábado, DOMINGOS ficou um ano mais velho do que eu.  Tem sido assim desde 1963.      
Em 20 de março de 63 eu completava 25 anos de vida. Conheci Domingos, que também tinha 25 anos. Tínhamos a mesma idade, os mesmos sonhos, as mesmas inquietações. Mas com certas diferenças também.
Domingos era o carioca descolado, cheio de meninas à sua volta, comandando a noite de Ipanema, do Zepelim, do Veloso, do Castelinho até o Mario’s Inn em Copa.
Domingos era o fodão do Bairro Peixoto! (É onde nosso herói morava).
Eu chegava de São Paulo para fazer “A Mandrágora” de Machiavelli no Teatro Santa Rosa, onde acampamos, eu e o Teatro de Arena, por dois meses. A peça era um sucesso e era natural que as meninas andassem à minha volta, e à volta delas rapaces* (rapazes) sempre prontos para uma mordida. * rapace – adj. - diz-se das aves de rapina.
Domingos comandava a banda com seu ar de poeta romântico, cravo na lapela, sapato bicolor, terno de linho,  gravata borboleta, sempre a indicar, decidido, a Via Láctea, isto é, o caminho da noite. Atrás dele o já proclamado bando de garotas e eu, que logo fui incorporado a ele, o bando. Devo dizer a vocês que tinha mulher bonita para todos os gostos.
(Isto vai dito quase como um segredo. As feias que me perdoem mas beleza é fundamental.
Apenas para quem foi íntimo, vai aqui um breve memorando de garotas que floriam o jardim da praia de Ipanema: Dorinha do Ruy, Glorinha, Solanginha, Aninha do Cecil, Marieta do Gaucho, Leila, Tânia, Ionita, Gladys, e muitas, muitas outras.
Não me estenderei em maiores detalhes em nome do silêncio tácito que devem ter os rapazes. As meninas se oferecem de bom grado e prazer a quem não conta vantagens, os amigos coloridos, tão íntimos e discretos quanto primos(as) e cunhados(as). Assim como hoje se “fica”, naqueles dias felizes muito se “ficava”, principalmente quem tinha um apartamento próprio ou podia usar o ap de um amigo. Domingos tinha uma cobertura no Bairro Peixoto, podia dar grandes festas, “o que um sorriso tem que outro não tem?”, as meninas chegavam e partiam, as que ficaram viraram amigas e junto com os amigos alegram as noites aniversárias até hoje, dia 27 de setembro de 2014. Tem gente que está na conta dos amigos há mais de 50 anos.

Esta é uma data que se repete todo ano, dia 28 de setembro, dia de DOMINGOS 78 (este ano) que vem fazendo da vida um sarau literário-filosófico, driblando as dificuldades, sempre com uma surpreendente produção de mais uma peça, um romance, mais um filme, que não dá para parar!
Que venham outros saraus filosóficos, outras festas domingueiras!
Sucesso para “INFÂNCIA”, um autêntico filme do Mingão. E que ninguém me apareça afirmando que Domingos é o Woody Allen brasileiro. Daqui do alto da Gávea eu vos afirmo que DOMINGOS OLIVEIRA não é o Woody Allen brasileiro!
Tá certo, eu também gosto do Woody Allen, a comparação do Domingos com ele pode ser até um elogio, mas ignora o que o brasileiro tem de original. Como Woody Allen, Domingos tem um humor muito particular, expressando-se através de uma câmera que se movimenta com muita liberdade, em planos longos, dando mais importância  ao jogo dos atores, espontaneamente bem ensaiados do que à construção formal da imagem. Domingos e Woody Allen, um novaiorquino e o outro carioca, fazem parte da mesma família de dramaturgos e cineastas. Mas o primeiro, nos anos sessenta, já fazia um cinema que Woody Allen só começaria a fazer bem mais tarde. Quando um já filmava “Todas as Mulheres do Mundo”, em 1965, o outro escrevia seu primeiro roteiro “What’s New Pussycat” (“O Que Há de Novo, Gatinha?”) que teve Peter Sellers no papel principal e Allen como coadjuvante. E somente depois de “Edu, Coração de Ouro” (1966) e “ As Duas Faces da Moeda” (1967), somente em 69, o americano dirigia seu primeiro filme, “Take the Money and Run” (“Pegue o Dinheiro e Corra”), tendo no mesmo ano estreado no teatro sua comédia “Play it Again, Sam” (“Toca-a outra vez, Samuel”, em tradução literal portuguesa), transformada em filme na década seguinte, em 1972, aqui exibido como “Sonhos de um Sedutor”.
E como se não bastasse essa comparação, aparece-nos outro autor que Domingos parece imitar: Lars Von Trier e seu Dogma 95. Acontece que o Dogma só apareceu em 1995 e Dogmingos faz cinema com liberdade, cenários naturais, câmera na mão desde 1965, ou seja, trinta anos antes.
 É o mesmo que dizer que Domingos segue os preceitos do Dogma 95 (de 1995) desde 1965!...
Se for para fazer aproximações é mais correto aproximar nosso cinema dos anos 60 do cinema francês desse mesmo período,  Godard e seu “A Bout de Souffle” principalmente e a Nouvelle Vague de um modo geral. Lá e cá a utilização de câmeras leves, até então exclusividade do cinema-reportagem,  permitiram uma nova linguagem, dando preferência aos ambientes naturais no lugar dos cenários de estúdio, planos-sequência, iluminação com pouca ]uz artificial, improvisações, etc. Essa liberdade é que fez com que “Todas as Mulheres do Mundo”, previsto para ser um filme de média-metragem tenha se
 tornado um longa-metragem, o primeiro filme com a marca registrada de Domingos que manteria seu estilo pessoal até o recente “INFÂNCIA”.
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O filme “INFÂNCIA” tem roteiro e direção do próprio Domingos baseado na  sua peça “ASSUNTO DE FAMÍLIA”, ou “DO FUNDO DO LAGO ESCURO”, um texto da  melhor qualidade, saboroso, inteligente e carregado de afeto, como tudo o que Domingos faz. A primeira montagem foi em 1977 no Teatro Ginástico, no Rio de Janeiro, com Fernanda Montenegro encabeçando o elenco, em espetáculo dirigido por mim. “ASSUNTO DE FAMÍLIA” teve uma segunda montagem em 2010, no Teatro Clara Nunes com Domingos como diretor e ator fazendo D. Mocinha, a matriarca da família, com boa parte do elenco que viria a fazer o filme em 2013.
A grande vantagem de “INFÂNCIA” é que  o trabalho dos atores vem aprofundado pela longa experiência que tiveram nas montagens teatrais, o que permitiu ao Domingos filmar planos longos, cenas inteiras com poucos cortes, dando ao filme um caráter quase documental, como se fossem pedaços de vida captados espontaneamente, num ritmo ágil e irresistivelmente comunicativo. “INFÂNCIA” é emocionante e divertido, engraçado e apaixonante.
                   Cotação: Imperdível.
                                                         PAULO  JOSÉ        04 -  outubro – 2014.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

UM RASCUNHO TUCANENSE


NO TÚNEL DO TEMPO                                                       


Como estou preparando a publicação de cursos que dei nos últimos dez anos, estive revisando todas as anotações que estavam no computador. Além das aulas, havia muitas crônicas e comentários de toda ordem, assuntos políticos, afetividades, críticas aos críticos, temas que apesar do passar dos anos, seguiam atuais como se tivessem sido escritos hoje. Desgraçadamente, na classe política continuam pontificando figuras de trinta anos atrás, como este da elite paulista, objeto de uma crônica escrita em 2006:

                                         UM   RASCUNHO TUCANENSE.

Há meses atrás recebi de um passarinheiro um presente bastante raro: uma grande gaiola com um casal de tucanos. A primeira impressão foi ótima. Eram uns pássaros engraçados, aqueles enormes bicos amarelos, vozes estridentes e monótonas, comendo o dia todo, sem parar, tinham habilidades circenses, pois não se contentavam em simplesmente deglutir os alimentos mas jogavam-nos para o alto e, bico bem aberto, faziam com que descessem diretamente goela abaixo.
        Mas a alegria durou pouco. Comiam e descomiam quase ao mesmo tempo; as frutas, mal entravam, já saiam, mantendo a gaiola sempre suja e mal cheirosa e os malabarismos muitas vezes mal sucedidos aumentavam a área das imundícies. Depois de uma semana de crescente arrependimento, consegui passar adiante aquele estranho casal, pondo um fim naquele incômodo de ter pássaros em gaiola, principalmente daquela natureza tão cagona.
                
 Quando o PSDB, partido para o qual trabalhei na campanha para a eleição de Fernando Henrique à prefeitura de São Paulo, adotou o tucano como símbolo, fiquei sem entender direito os motivos dessa escolha. Será que tinha algo a ver com uma campanha da VARIG montada em cima de um tucano em férias, de chapéu de palha e caniço de pesca sobre o ombro? Tudo bem, o tucano parecia divertido mas ficaria melhor num circo do que em um prédio de administração pública.
          Aliás, os tucanos sempre me pareceram ter muito bico e pouco bestunto. Pois não é que naquela campanha política de que falava acima, o nosso FH apareceu nas revistas aboletado na cadeira do Prefeito, antes mesmo das eleições, tal a certeza que tinha da vitória. Foi um fiasco memorável. Jânio Quadros, o homem da vassoura e nosso adversário, ganhou fácil  e seu primeiro ato como governante eleito foi mandar desinfetar a cadeira na qual o Tucano havia se empoleirado precipitada e indevidamente.
          Hoje eu moro no alto da Gávea, no meio do mato, e tenho uns vizinhos tucanos. Passam a berrar toda a manhã, um grasnar monótono e estridente, insuportável. O tucano é uma ave antimusical, tem um bico insaciável e, o pior de tudo, é um predador, um ladrão, um assassino. Ataca ninhos de pássaros menores e devora-lhes os filhotes. Nesta época do ano, a primavera, a gente encontra muito ninho destruído pelos tucanos. Agora, quem foi o marqueteiro que fez desse bicho o símbolo de um partido que se diz democrata e socialista, e quem o teria aprovado? PJ.
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Governador de São Paulo Geraldo Alckmin é candidato à Presidência da República pelo PSDB
Peguei a maior antipatia por tucanos. Por isso, quando penso nas eleições que se aproximam,  cheias de indecisões, prefiro votar no Mico Preto, no Urubu do Mengão, no rinoceronte  Cacareco, no macaco Tião, (aquele que jogava cocô nos visitantes do Zoológico),  mas do Tucano Alckmin e similares quero distância.

    TUCANO, ALGUMAS DEFINIÇÕES GENÉRICAS E APLICAÇÕES PRÁTICAS
GERALDO – TUCANO - ALCKMIN – subst. masc.Nome dado a candidato do PSDB para a Presidência da República. Na convenção partidária foi derrotado por José Serra, mas como era um nome para queimar, o próprio Serra, FHC e outras siglas importantes fizeram de conta que Geraldo Alckmin seria o candidato vitorioso. Aécio Neves foi dos mais empenhados na “vitória” de Alckmin pois assim não se criará nenhuma liderança nova que possa fazer sombra à sua candidatura nas próximas eleições. Aécio já se prepara para festejar a vitória de Lulalá e lançar a Linha Verde da Esperança com a aliança PSDB/PT  em torno de um nome de união nacional, o seu próprio.         

TUCANOs. m. Designação comum às aves trepadoras da família dos ranfastídeos, que se caracterizam por um grande bico, quase do tamanho do corpo (esta desproporção foi o principal fator que levou o PSDB à escolha de Geraldo Tucano Alckmin, o maior nariz dos partidários do FHC, semelhante ao do Pinoquio, quando mente). Apesar de enorme, o bico é leve e fraco (o que permite que Geraldo, coitado, possa voar sem ficar de cabeça para baixo), asas arredondadas e comprida cauda triangular. Dorme com a cabeça debaixo da asa, e cobre o dorso com a cauda (poupando-se de ver as coisas que acontecem à sua volta, principalmente à noite. No Brasil, o tucano (ramphastus vitellenus) tem a base do bico mais larga do que a cabeça e as narinas ocultas (propriedade nasal que o livra de sentir o mau cheiro à sua volta e até mesmo no seu ninho. Alimenta-se basicamente de frutas mas tem instinto predador e devora filhotes de outras aves, espécies bem menores, que Geraldo não é besta de se meter com alguém do seu tamanho.

ALGUMAS AFINIDADES TUCANAS, RANFASTÍDEAS E ALQUIMÍNICAS.

AtucanarVerbo transit. direto. (Reg. Sul) Importunar, apoquentar, irritar.
AtucanadoAdj. - Que se assemelha ao tucano, principalmente o bico: nariz atucanado. (Regional sul) Molestado, jncomodado, apoquentado, espicaçado, importunado.
Tucanarverbo - Votar com os tucanos, isto é, o PSDB, que tem essa bizarra ave como ícone.

Ranfastídeos – Família de aves trepadoras, de grande bico, à qual pertencem os tucanos.
          Uma constatação: A RANFOTECA DO GERALDO ESTÁ CADA VEZ MAIOR.
          Um Insulto: - O ALCKIMIN NÃO PASSA DE UM RELES RANFASTÍDEO!...              
                                   AINDA DO VERNÁCULO, em torno do Alckmin:
Alquime – Liga metálica qe imita o ouro, pechisbeque, ouro falso.
Alquimiado – adj. Feito de alquime, falso, adulterado, fingido.   
Alquimiarverbo trans. direto. Falsificar, adulterar, contrafazer.
Alquimin – Pechisbeque, ouro falso.
Pechisbeque = s.m. – liga de cobre e ouro, imitando ouro; ouro falso; ouropel; (do inglês pinchback.

Ai de mim, alckmin
Ai de ti, alckti, e assim por diante...

                                                               Paulo José – out 2006
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A PROPÓSITO DO AÉCIO APOIANDO SIMULTANEAMENTE O AIDEMIM E O LULALÁ.
Na vida pública brasileira vários políticos já foram queimados, fritados, enganados e, para usar uma expressão de uso corrente no sul, cristiados. Alguma coisa como ser feito de Cristo, sacrificado pela salvação de outros.
A mais perfeita cristianização política é bem conhecida em Minas, posto que a ação leva o nome de sua vítima. Cristiaram, cristianizaram o Christiano Machado, figura de proa do PSD mineiro.
Em resumo, foi assim:  
Getúlio Vargas, ditador deposto em 45, depois de cinco anos de doce exílio em São Borja, fundava o PTB e se candidatava à presidência da República em 1950. A UDN tinha seu candidato, o imaculado Brigadeiro Eduardo Gomes. E o PSD mineiro? Protásio Vargas, irmão de Getúlio, era seu fundador, junto com Tancredo Neves, um partido que não queria ser confundido com o PTB do Getúlio. Tinham de ter candidato próprio. Mas nas internas, fecharam com Vargas. O grande golpe para derrotar a UDN seria dividir para vencer.
Alguém teria de ser entregue aos leões nesse processo político. Mas quem? Não poderiam queimar o avô do Aécio, seria desperdiçar o grande conciliador, o PSD em sua essência.  Quem seria cristão, um buen Cristiano, o suficiente para aceitar a provação sem queixumes ou mágoas? A resposta estava soprando no vento: O irmão do Aníbal Machado, o tio da Maria Clara, mãe do Pluft, o Fantasminha, o tio avô do nosso ator Chico Aníbal, o honesto, o íntegro, o caráter sem jaça, Cristiano Machado, que foi candidato do PSD para o PSD votar no Getúlio ou roubar votos do Brigadeiro, pois quem quisesse votar em político de mãos limpas podia escolher entre dois: ou o Brigadeiro (solteiro, morando com as irmãs) ou o Congregado Mariano Cristiano Machado. Mas quem tinha Getúlio à mão, prá que ia querer um candidato de mãos limpas? Maquiavel devia fazer pós-graduação em Minas...
          Na época, andaram rolando de boca em boca uns versinhos meio bobinhos se ouvidos hoje mas que faziam bastante sentido para nós naqueles tempos mais inocentes:                                            
                                                     Cristiano Machado
                                             É cristão mas é um mau achado
                                          Quis cristianizar o Brasil a machado
                                             Foi ”cristiado” e não foi achado...

          Em reconhecimento por seu desprendimento e abnegação, hoje Cristiano Machado é, salvo engano, a maior avenida de Belo Horizonte, parte substancial da Linha Verde que aproximará definitivamente Minas Gerais do resto do mundo, via Aécio Neves.
          E Geraldo Aidemim, terá pelo menos um beco sem saída, uma placa em uma praça, mesmo que diga apenas “Não Pise na Grama!” ou “Cuidado, veneno para ratos!”

          O futuro dirá.                                                      Paulo José.              Out 2006.




           Copiado em 25 / 08 / 2014

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

VEVÉIO PERÉIO PÉIO TEM CARA DE NEGO VÉIO



Toda vez que alguém pedia para ele explicar a origem daquele estranho, mas simpático, sobrenome, Paulo César Peréio primeiro dizia tratar-se de um apelido e não um nome de família, depois contava sua origem. Era assim. O pai levantava o pequeno Peréio, que teria uns dois anos e o jogava para o alto exclamando: “Vevéio Peréio Péio tem cara de nego véio!” O menino se regalava rindo muito, não importava quantas vezes a brincadeira fosse feita. Até o dia em que havia se tornado pesado demais para aquele jogo. Mas ficara o apelido Peréio e se desenvolvera nele o hábito, ou a qualidade, de jogar tudo para o alto, sem medo de voar nem de recomeçar a vida quantas vezes fosse necessário. Peréio era, e continua sendo nosso mais autêntico outsider, em quem se esconde uma ternura que a aparência mal humorada não consegue esconder.
Peréio é um santo às avessas.
                    NAQUELE TEMPO PORTO ALEGRE ERA UMA PEQUENA GRANDE CIDADE.
                                                                 HOJE É UMA GRANDE PEQUENA CIDADE. Mário Quintana.
Quando eu fui para Porto Alegre, no final dos anos cinqüenta, Peréio já morava na Tomás Flores,  primeira rua depois da Barros Cassal, onde passei a morar. Hoje isto não quer dizer    nada mas naquele tempo as ruas tinham uma significação muito forte. Os grupos de adolescentes eram definidos pelas ruas, a turma da Barros, a turma da Tomás Flores, da  Garibaldi, da Santo Antonio. Cada rua era um bando e havia uma certa rivalidade entre elas, às vezes com verdadeiras guerras campais. Peréio e eu éramos vizinhos mas de gangues diferentes. É como se morássemos a quilômetros de distância um do outro. Foi o teatro que nos aproximou. Ambos queríamos, precisávamos praticar alguma transgressão. Como não era de nossa índole atear fogo em mendigos, nosso limite era afanar um litro de leite, que era distribuído em garrafas colocadas nas portas das casas. E o teatro era a concretização de uma Ergela Otrop, uma Porto Alegre lida ao contrário, transgressiva.
                    Mario de Almeida, diretor paulista que fora dirigir “O Macaco da Vizinha” foi quem nos aproximou definitivamente. Pereio era quatro anos mais moço do que eu, Mário alguns anos mais velho. Mas fazíamos um estranho trio, no qual as diferenças eram o que mais nos aproximava. Um tinha o que faltava aos outros e havia uma admiração mútua, um sentimento recíproco que se chama simplesmente amizade. Nós éramos amigos.                     Essa identidade criou vínculos eternos. Podemos ficar muito tempo sem nos ver mas cada novo encontro é como se estivéssemos juntos, sempre.
Se há estórias divertidas? Muitas. Cômicas, patéticas, ridículas, emocionantes.
                   Quando Luis Carlos Maciel  dirigiu “Esperando Godot”, de Samuel Beckett, ao lado de Lineu Dias e  do próprio Maciel, lá estávamos nós, Pereio, Mário e eu.
                    Peréio, que tinha apenas 17 anos, fazia o menino que vem trazer um recado aos dois vagabundos. Seu texto era apenas: “O Senhor Godot manda dizer que hoje não pode vir, mas que amanhã virá com toda a certeza”. Uma pequena frase, dita duas vezes, nos dois atos, mas decisiva e que originava polêmicas sobre o que significaria Godot.  Seria God, Deus? Ou um anagrama de Dog, Cão?  Beckett jamais quís explicar. Peréio também não.
                                      Tínhamos um teatro na rua Gen. Vitorino, o Teatro de Equipe, onde fizemos um bom repertório teatral: “A Almanjarra” e “Amor por Anexins” ambas de Arthur Azevedo, “A Farsa da Esposa Perfeta” de Edy Lima, “Poetas e Poemas” e “Rondó 58”, espetáculos de poesia, “Romeu e Julieta” de W. Shakespeare. No sub-solo o Bar do Teatro, sob a direção do Peréio, onde rolavam os dados num empolgante Seven Eleven, a dinheiro. E o sucesso de todas as noites, o melhor scotch Black Label ao preço de um Old Eight nacional, sem esperar 12 anos para ser envelhecido em tonéis de carvalho. A distilaria funcionava no quartinho das garrafas. Equipamento: apenas uma seringa de injeção.
                                                  Juntos os três novamente, Mário, Peréio e eu, em “Romeu e Julieta”, de W.  Shakespeare. Mário dirigia, e tocado pela magia do bardo de Stratford-upon-Avon, sofria da mesma paixão do jovem Montecchio: o amor de Julieta, no caso a atriz. Enquanto Mário penava, nossa professora de dança, uma mestra russa, Marina Fedossejeva, nos obrigava a andar com a elegância de duas cegonhas, que seria a maneira clássica do ator se movimentar em cena. Era assim: levar um pé à frente em ponta, tocar no solo e só depois baixar todo o pé até o calcanhar. A seguir,  proceder da mesma forma com o outro pé. Ponta, calcanhar, ponta, calcanhar, ponta, calcanhar, durante todo o espetáculo.
                     Mas o momento culminante era quando Teobaldo e Mercutio, Peréio e eu, se batiam em duelo mortal. Andar na pontinha dos pés, tornou-se momento de graça e beleza diante da cena dos dois  cruzando armas com a destreza de dois ouriços caixeiros enquanto a Sagração da Primavera de Stravinski explodia no mais alto volume e Mario garantia o efeito geral de ferocidade da cena, com um cabo de vassoura agitando freneticamente a água salgada das barricas que acendiam e apagavam aleatoriamente as luzes do palco. (*) Assim Mário de Almeira criava com violência e desespero, pelas abruptas alterações da luz, a  morte de Mercutio.  Bob  Wilson não faria melhor.
Depois disso, não havia mais nada que pudesse nos desconcentrar em cena. Estávamos prontos para qualquer tipo de teatro e o batismo comum foi como um pacto de índios que se cortam os pulsos e misturam seus sangues.
E desde então Paulo César Christofoletti Hugo de Campos Velho, Paulo José Gómez de Souza e Mario Coelho Pinto de Almeida tornaram-se irmãos para sempre.                    PJ
Paulo José                                                                                revisto em 20 de agosto de 2014

(*)As barricas com água salgada eram uma versão primitiva dos variadores de intensidade da luz usando o princípio da eletrólise.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

MEMÓRIAS * LEMBRANDO DE CACILDA BECKER



Brevíssimo resumo de nossa história nos idos de abril de 1964.
O país.
Dias de grande efervescência política. Os movimentos populares, organizações estudantis e sindicatos das cidades e do campo, exigiam transformações profundas em nosso país. A  vasta classe média não abria o bico. Mas o discurso  inflamado de Jango Goulart, Presidente da República, no comício do dia 13 de março, na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, nos dava a certeza que o exemplo de Cuba frutificaria, o capitalismo estava com seus dias contados e a utopia socialista tornava-se realidade possível, palpável, concreta.

Nós.
Esses dias vibrantes nós os passávamos no Teatro de Arena de São Paulo, fazendo a peça de Gianfrancesco Guarnieri “O Filho do Cão”. Eu dirigia e atuava ao lado do próprio autor, Gianfrancesco Guarnieri, e Juca de Oliveira, Isabel Ribeiro, Dina Sfat, João José Pompeo, Anamaria Cerqueira Leite e Abraão Farc. Flavio Império, também diretor do Arena,  assinava a cenografia.

Até que um dia, mais precisamente no dia 31 de março de 1964, começava uma movimentação militar em Minas contra o Governo de Jango, encabeçada pelo General Mourão que se auto-definia com sendo “apenas uma vaca fardada”. Aquilo parecia um autêntico primeiro de Abril, um golpe pífio, uma mentira de pernas curtas. Mas logo as coisas foram mudando, e os generais fiéis a Jango, inclusive o Amaury Kruel, Ministro da Guerra, aderiram ao golpe, derrubaram o Presidente proclamando uma revolução redentora para impedir que o Brasil viesse a se tornar um país comunista. O exército tomou conta das ruas e começava a temporada de caça aos subversivos. Para nosso espanto o dragão da maldade era uma hidra de sete cabeças e apenas uma delas havia sido atingida. A classe média, outrora maioria silenciosa, agora faladeira e rezadeira marchava com Deus, pela Pátria e Família.

Poucos dias depois do golpe militar, estávamos no teatro apresentando “O Filho do Cão” do Guarnieri. Casa lotada, estranha agitação na plateia, da bilheteria vem a notícia: a rua está cercada por policiais e a ordem é prender o elenco no final do espetáculo. O Arena tinha uma só porta para entrada do público e saída dos atores. Um beco sem saída. A peça chega ao fim, a plateia aplaude e o elenco não vem agradecer. Lá fora cái uma chuva fininha e misturado ao público, protegidos pelas capas, chapéus e guarda-chuvas, o elenco escapa incólume. Os homens de terno escuro e gravata ficam ainda um tempo, desolados com a perda das suas presas. Também, quem mandou usar óculos escuros à noite?!

CACILDA BECKER ENTRA EM CENA

O Teatro de Arena foi fechado e o DOPS começava a interrogar pessoas da classe teatral procurando identificar seus subversivos. Cacilda Becker foi a primeira a ser ouvida como uma atriz sabidamente não comunista e que poderia identificar os elementos da classe teatral ligadas a organizações de esquerda. Cacilda, assistida pelo diretor da Comissão Estadual de Teatro, Nagib Elchmer, teve uma atuação brilhante, segundo relato do próprio Nagib. Foi de uma candura e sonsice extraordinárias. Interrogada sobre vários atores, alguns sabidamente ligados ao Partido Comunista, respondia com elogios à sua vida profissional, falava de peças, personagens que haviam feito e ignorava perguntas de ordem pessoal ou política. Alegava estar sempre tão ocupada com ensaios e espetáculos que não lhe sobrava tempo para se interessar por política nem freqüentar reuniões políticas ou sociais. Mas saiu de lá com informações de que os diretores do Arena, Flavio Rangel e outros artistas seriam presos. Como ainda não se sabia o grau de violência da repressão, podia  acontecer o pior, todos deveriam desaparecer pelo menos até que se entendesse melhor o que estava acontecendo.
Foi assim que  no dia seguinte ao interrogatório de Cacilda estava eu dentro de um automóvel, levado para não sabia aonde, por amigos ligados a organizações de esquerda encarregados de proteger pessoas ameaçadas pelo golpe militar. O carro deu várias voltas pelo centro, parou duas ou três vezes, alguém descia para telefonar, voltava dando novas ordens em voz baixa, num clima de inquietante conspiração. Finalmente chegamos a um edifício da Avenida Paulista, esquina com o Trianon. Meu acompanhante do assento traseiro desceu com minha bagagem, entrou no prédio, voltou depois de alguns minutos, abriu a porta e me disse que eu ficaria ali, na casa de pessoas amigas. A portaria era familiar, o elevador também e quando cheguei ao último andar já tinha certeza do meu destino. Foi com enorme alegria que vi a porta se abrir e ali estavam Cacilda Becker e Walmor Chagas dando as boas-vindas. Ao entrar na sala vejo Flavio Império, meu querido amigo que também havia sido trazido por outros anjos protetores. Logo depois chegava Dina Sfat para me visitar e tivemos um encontro de forte emoção. As notícias eram desencontradas, ninguém sabia ao certo o que estava acontecendo. Sabíamos que devíamos ficar ali, Flávio e eu, por algum tempo, felizmente junto de pessoas tão generosas e solidárias. Flávio Rangel foi para o Rio de Janeiro onde tinha apartamento, Augusto Boal fora mandado para o interior de São Paulo,  se não me engano para uma fazenda da família Mesquita, donos do jornal O Estado de São Paulo. E Juca de Oliveira e Guarnieri, coitados, mandados pelo trem da morte para a Bolívia!
O apartamento de Cacilda e Walmor era muito amplo, com um enorme terraço que nos permitia ter uma vista geral da cidade. Uma bela casa no alto de um prédio, que davam a Cacilda e Walmor uma imagem de atores bem sucedidos. Tinham um grupo permanente funcionando no teatro da Federação Paulista de Futebol, na Brigadeiro Luis Antonio, o Teatro Cacilda Becker. Haviam feito excursões pelo Brasil de grande sucesso. Em 1958 eu morava em Porto Alegre e o TCB, Teatro Cacilda Becker, recém fundado, fez lá uma temporada de quase quatro meses, com um repertório de seis peças, “O Protocolo” de Machado de Assis, “Pega-Fogo” de Jules Renard, “Mary Stuart” de Schiller, “O Santo e a Porca” de Ariano Suassuna, “Jornada de um Longo Dia Para Dentro da Noite” de Eugène O’Neill e “Santa Marta Fabril” de Abílio Pereira de Almeida. Todas as peças dirigidas pelo Ziembinski. A estréia da temporada gaúcha no Teatro São Pedro, com “O Protocolo” e “Pega-Fogo” foi inesquecível, com uma platéia aplaudindo delirantemente por mais de vinte minutos. Foi a maior ovação a que assisti em toda minha vida. A temporada continuou seu sucesso em cidades do interior gaúcho até chegar em Montevidéu, sempre lotando os teatros, com rasgados elogios da imprensa uruguaia.
Essa temporada, com um extenso repertório, grande elenco seria inimaginável nos dias de hoje. Mas naquele tempo o teatro ocupava um lugar importante na vida cultural do país. Grandes companhias permanentes se multiplicavam no Rio e São Paulo, e havia movimento teatral significativo em Salvador, Recife, Belo Horizonte e Porto Alegre.
Mas isso não impedia que às vezes grandes revezes colocassem em risco a continuidade de trabalho dos teatros estáveis. Em 1963 o Teatro Cacilda Becker amargava um tremendo fracasso com “César e Cleópatra”. Isso em um espetáculo dirigido por Ziembinski, com Fredy Kleemann, Kleber Macedo e Jorge Chaia, fundadores da companhia, além de atores como Raul Cortês, Graça Mello, Stênio Garcia e Plínio Marcos. Para pagar dívidas Cacilda e Walmor haviam vendido até a Kombi que servia a companhia. Restou-lhes o apartamento onde continuavam cheios de otimismo promovendo todas as segundas–feiras leitura de peças inéditas de autores brasileiros. Participavam das leituras atores como Fredy Kleemann, Kleber Macedo, Raul Cortez, Gianfrancesco Guarnieri, Dina Sfat, Isabel Ribeiro, Juca de Oliveira, Graça Melo, Benedito Corsi, diretores como Gianni Ratto, Flavio Rangel, Augusto Boal, autores como Jorge Andrade, Bráulio Pedroso. No amplo terraço improvisava-se um auditório ao ar livre, platéia com umas vinte ou trinta cadeiras, mesa para os leitores, um bar com bebidas, água e café e algumas vezes com o cenário extra de uma bela lua num céu estrelado.
Assim, na primeira segunda-feira após nossa mudança, houve leitura de uma peça do Bráulio Pedroso. Flávio e eu, na nossa condição de clandestinos acompanhamos a leitura e debates protegidos pelo escuro da sala contígua ao terraço. Dina, sentada na última fila e bem próxima de onde estávamos ficava de lá pra cá, ora com a gente, ora com a assistência da leitura. Após a apresentação da peça houve um debate que se estendeu até as duas horas da madrugada.
Na outra segunda-feira, já cansados de ser Anne Frank, resolvemos aparecer na leitura sem dar a entender que estávamos morando ali. E os convidados eram todos amigos. Foi um encontro muito emocionante porque apesar da insegurança e o medo, todos continuavam vivos, cheios de planos e com muita energia para responder à agressão sofrida. E assim fomos levando nossas primeiras semanas. As rádios e televisões estavam sob censura e as poucas notícias que recebíamos eram as trazidas por Dina, que me visitava todos os dias e outras trazidas por Cacilda e Walmor. Começávamos a viver a rotina da casa, com a companhia permanente de Fio, um pastor alemão que era nosso guardião. Todas as noites Walmor saia para o passeio diário do cão, dando a volta no Trianon e regressando meia hora depois. Naquele tempo as ruas e parques eram lugares seguros, não havia violência urbana, assaltos. Mas havia esta outra formas de violência, mais cruel, mais arbitrária, a da repressão política, primária, irracional, estúpida.
Depois de quatro semanas de agradável reclusão, como as notícias eram tranqüilizadoras para o nosso lado, a classe teatral não era tão perigosa assim nem o golpe militar havia sido dado por nossa causa, Flávio e eu voltamos para nossas casas. Continuamos participando das leituras das segundas-feiras onde cada vez mais a política  era o tema principal. Um forte movimento de resposta à agressão sofrida crescia em todo o país. Os anos que se seguiram foram admiráveis, o teatro, o cinema, a música, as atividades estudantis nunca haviam sido tão pujantes. Até o dia 13 de dezembro de 1968, quando o Ato Institucional n. 5 fechava o Congresso, acabava com as liberdades individuais, o direito de reunião, o hábeas corpus, a inviolabilidade do lar, e começavam os anos de ferro que entrariam pelos anos setenta pondo fim a todo aquele movimento teatral que começara nos anos cinqüenta. Acabavam os teatros estáveis, os teatros de grupo, o Cinema Novo e nossas vidas tomaram rumos diferentes.
Fui morar no Rio de Janeiro, entrei para a televisão e passei a ter contatos muito esporádicos com a gente de teatro de São Paulo. Mas até hoje, quando passo pela Paulista na esquina do Trianon, me vem à memória aquele gesto até certo modo surpreendente daqueles dois que, sem fazer alarde de suas posições políticas, haviam praticado um ato de  solidariedade como só as pessoas com grandeza de alma são capazes de praticar. 
Cacilda e Walmor, obrigado para sempre!

Paulo José  -  Rio, 11 de setembro de 2002.
                                                    Rio, 15 de agosto de 2014.


terça-feira, 5 de agosto de 2014

BREVE PREFÁCIO

Como agora sou um blogueiro, vou ao fundo do bau (computador) e começo a pôr para fora textos de dois anos atrás,  contos breves,  poemas de minuto, perfis de pessoas que admiro, fábulas amorais, estórias imorais, crônicas morais, enfim tudo o que acho que merece um mínimo de visibilidade.
 Os possíveis anacronismos espero que sejam anulados pelos comentários sobre o mundo  de hoje, real e  fantástico, no qual vivemos.
Qual é mais real, o mundo do tigre que devorou a criança no zoo ou

                                                              o mundo dos tigres de Borges?

DE PANDORGAS, PAPAGAIOS, PIPAS, RAIAS E ARRAIAS



DO CORREIO DO POVO
Lavras do Sul – Do correspondente local - Deu entrada ontem à noite no Hospital Municipal deste município o cidadão Paulo Souza acidentado quando soltava pandorga no campo do senhor Gratula Munhoz. Testemunhas que presenciaram o acidente disseram que o referido rapaz vestia sandálias de dedo e corria de costas quando perdeu o equilíbrio e foi ao chão causando fraturas em diversas costelas, segundo laudo do plantonista de plantão. O jovem deverá guardar o leito durante uma semana e o quadro somente estará normalizado dentro de seis meses. Não se recomendou o uso de gesso pois o último paciente que teve o peito imobilizado veio a falecer por absoluta falta de ar.



DE COMO FRATUREI TRÊS COSTELAS SOLTANDO PANDORGA. OU PIPA. OU PAPAGAIO. OU RAIA


                    Eu gostava do som: Pan-dor-ga. E papagaio, e raia ou pipa. Mas o mais sonoro era “Pandorga”. A pandorga. Gostava. De fazê-las. E gostava mais ainda de soltá-las no vento forte da primavera. Tínhamos, eu e meus irmãos, uma pandorgaria, uma oficina de pipas na garagem, e nos fins de tarde íamos, de banho tomado, fazer os consertos do dia em nossas pandorgas. Havia pressa em colar as partes danificadas, com GRUDE caseiro de cola de polvilho ou de farinha de trigo, antes que o sino tocasse chamando o povo para a SOPA.

DO GRUDE
         Ingredientes: Um recipiente que vá ao fogo, uma colher de pau, fósforos, isqueiro, fogão  (ou qualquer outra coisa que produza chama, calor), farinha de trigo ou polvilho, água.

                  Modo de preparar: leve ao fogo o recipiente com água. Antes, acenda o fogo com o fósforo. Quando a água estiver morna, isto é, em torno dos 30º, deitar a farinha, ou polvilho,  aos poucos, mexendo sempre, com colher de pau para que esta se dissolva e não empelote. Continuar mexendo até o ponto de fervura. Retirar do fogo e testar sua qualidade  pondo um pouco do grude na gema do polegar direito (os canhotos podem usar o polegar esquerdo) e movimentar os demais dedos como pinças que vão de encontro ao polegar opositor. Um bom grude deve ter resistência ao desgrude. Seca rapidamente e se limpa facilmente as mãos com um pano umedecido.

da sopa, ou fervido, ou puchero.
                    
                Tinha caldo de carne feito com espinhaço de cordeiro ao qual se acrescentava batata inglesa, batata doce, cenoura, couve, abóbora, repolho, ovos cozidos, sal a gosto e, o melhor de tudo, espigas de milho cortadas em roletes e que eram servidas à parte. Doña Carmen, de pé, ao lado da mesa, servia a sopa, prato a prato, ela mesma. Ficava zangada se alguém rompia o ritual, antecipando-se um rolete de milho, ou um pedaço de carne.
                 
                 Fazia-se silêncio, era melhor mastigar do que falar, e todos se ocupavam com a sopa que era marca registrada do Cerro Branco, fazenda no município de Lavras do Sul, onde passávamos os verões.
            
               Havia uma certa pressa em voltar à garagem, quase sempre com plena ocupação do pronto socorro de papagaios. Eram variados os problemas, quase sempre originais, isto é, de origem, de nascença.
                    Para isso é preciso entender um pouco de pandorgas.

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UM POUCO SOBRE PIPAS,       PAPAGAIOS, RAIAS, ARRAIAS E PANDORGAS

                            Desde l952 estamos estudando o comportamento dos papagaios e pipas. Foi nesse verão que criamos a Faculdade Cerrobranquense de Pandorgas, Papagaios, Pipas e Raias dos Irmãos Gómez de Souza (todos ótimos alunos). A.W. Schimmelpfenning (1889-1968) criou a 1ª associação de pandorgueiros, em Frankfurt, depois em Paris, a partir de 1920, onde consolidou alianças com clubes recreativos de todo o mundo. Hoje, são 116.345 entidades que formam a Federação dos Clubes e Associações dos Amigos dos Papagaios, Pipas e Pandorgas. Em Lavras, sem incluir o 2º distrito de Ibaré, há 37 corporações formadas por Souzas, Teixeiras e Bulcões, com a exclusão dos Freitas, Silveiras, Saraivas e Ferreiras, que se recusam a pertencer a qualquer associação que os aceite como sócios.
                    Voltando à vaca fria, essa variedade de entidades criou diversos artefatos voadores: a pandorga trenó, a pandorga dirigível, a pandorga F15 (que vale por um bifinho). Destas, vale destacar a pandorga caixa, caixote ou bidê que tem uma forma sui generis. Assemelha-se a um criado mudo, uma espécie de caixote ou bidê, um prisma retangular. Citaremos apenas de passagem os “voadores” de Pompéia, que nasciam como Príamo, portando um falo extraordinário, objeto de culto à virilidade.
                    Eram muitos os problemas de navegação aérea. Havia  as suicidas, rodando, rodando e, em espiral, estatelando-se no chão. Havia as porra-loucas, as sossegadas, as belicosas, as melífluas, todas precisando de cuidados.
                    Pandorga é que nem gente. Nasce inacabado. Leva algum tempo até firmar-se nas próprias asas e adquirir autonomia.  Ao apresentar problemas é retirada de circulação e levada para o pandorgário. Lá, é submetida a uma bateria de exames até que se localize as causas do seu mau funcionamento.
                        A instabilidade pode vir da rabiola curta.
                       A dificuldade em subir aos céus pode se originar em rabiola muito longa e pesada.
                     A instabilidade pode vir da guia onde se prende a corda. A tendência a se mover sempre para a direita, antes de ser um problema político, pode ser  falta  de bilateralidade equilibrada, falta de simetria, um lado maior e mais pesado que o outro.
                    E há ainda enormes diferenças de temperamento,  que irão definir o caráter de cada uma. Pacíficas, guerreiras, místicas, maternais, enfim tão inqualificáveis quanto as mulheres.
                     Para que tenham som, coloca-se um roncador, que é uma tira de papel celofane picotada e colada na parte superior da raia.      
                      Nas pipas militares, nos primeiros 5 metros de corda, contados a partir da pipa propriamente dita, cola-se cerol, que é vidro moído com cola, que lhes dá grande vantagem nos combates aéreos, quando as cordas se entrelaçam e se trava um duelo singular, do qual somente a mais forte, ou a mais equipada, sobreviverá sem danos.
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Finalmente O INCIDENTE
                    Foi assim:
                    Havia levantado cedo, vi nascer o sol atrás do Cerro da Mantiqueira lançando sombras compridas sobre a casa e o galpão. O vento levantava as plumas das avestruzes que rodeavam a cozinha disputando um pedaço de pão. Logo me ocorreu um pensamento que me saiu em palavras: “Dia bueno pra botar as pandorgas no céu”. E assim foi dito e assim foi feito. Logo depois, já estávamos, com chinela de dedo, soltando uma pequena pandorga com um desenho do Miró, lembrança de Barcelona. Beleza a facilidade com que se alçou mais alto do que os quero-queros, que voavam em círculo dando gritos estridentes como só os quero-queros sabem dar, fingindo estar a defender o ninho e, na verdade fazendo apenas uma manobra dissuasória, um falso anúncio para nos manter distantes dos filhotes. Depois foi a vez de um tigre chinês, vindo via Paris, também vocacionado para o vôo, que logo ficou à vontade balançando preguiçosamente a longa cauda e roncando como um tigre de papel. 
                    Mas o melhor ainda estava por vir. Miró e o felino já estavam a regalar-se no lago azul daquela manhã de carnaval quando Tiago e eu decidimos dar um salto de qualidade em nossa pandorgança. Abrimos a garagem e de lá trouxemos uma asa delta, com envergadura de 2 metros, feita com tecido de paraquedas, comando de duas manoplas, duas linhas cada uma, totalizando quatro linhas com mais de 30 metros de comprimento. Uma verdadeira arma de destruição em massa. Era a primeira vez que voaríamos em dupla, cada um segurando uma manopla. Ainda no chão, nosso inquieto bagual já queria ganhar altura, indócil como cavalo no partidor. A aventura prometia. A asa delta, impelida pelo vento, corcoveava como potro que quisesse livrar-se das rédeas que o detinham. Seu corpo batia desordenadamente nos obstáculos próximos. Havia uma ferocidade suicida naquela pipa que parecia preferir a morte ao cativeiro. Dando um pouco de linha conseguimos acalmá-lo  e enquanto acabávamos o trabalho de verificar a correção das linhas e o encontro destas com o corpo do bicho, ouvíamos seu resfolegar. Era  de se ver. Até nas pipas se nota a diferença da sorte... Miró e o tigre de papel compunham uma paisagem suave enquanto a fera de Miami era toda agitação e urgência.  
Uma variação do vento, agora mais firme, era o que faltava para o bicho subir. E veio. Foi uma ascensão quase vertical e demos um – “Hurrah! de vitória. Agora era só administrar a tensão das  cordas, dando um pouco de linha quando a força do vento nos parecia excessiva, encurtando-as quando a asa delta perdia altura. Tiago e eu nos desdobrávamos tentando controlar aquela besta fera que agora dava vôos rasantes sobre nossas cabeças, subia a 30 metros e se despencava fazendo uma  curva rente ao chão. Havia beleza nisso e conseguimos abrandar a raia que agora, passado o susto inicial, voava suave como uma gaivota.                         
De repente, uma lufada de ar quente  desequilibra a asa delta que cai velozmente pelo lado que eu tinha de manter esticado. Puxo os fios que continuam frouxos, preciso recuar, mais, mais, mais, estou numa descida, de costas, correndo aos saltos, o chinelo de dedo, ah o chinelo de dedo se prende no capim, a pandorga continua caindo, caindo o chinelo, a chindorga, o panelo, o capim, o aipim, o chão, o cão, vêm ao meu encontro, o baque surdo do absurdo baque, falta-me o ar, ouço um estrondo, CABOUM!, o dia vira noite assim, de repente, fogos de artifício relampejam dentro da minha cabeça.
                    O resto nem vale a pena contar. Apenas dizer que a brincadeira me custou seis meses de tratamento por três costelas fraturadas, inúmeras bolsas de gelo e de água quente e um chinelo de dedo inutilizado. Ainda me resta outro mas, o que se pode fazer com um pé de chinelo?                                                                        
                                                                                                                          Paulo José 
    
PENSAMENTO DO DIA: Quando urubu tá de caipora, o de baixo caga no de cima.                  
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segunda-feira, 28 de julho de 2014

MR. THACKERAY E O TAL DE KNOW HOW


                                                                                                
Esta é uma velha história que se passou numa indústria de, digamos, São Paulo. Uma máquina, dessas de fazer barulho, cheia de salamaleques, engrenagens, braços mecânicos, molas, dinamômetros e parafusos, começou a apresentar superaquecimento, lentidão progressiva, redução de ruídos até o silêncio total.  A máquina havia parado de funcionar.
Mr. J.P. Thackeray, o dono da máquina de fazer barulho logo chamou a assistência técnica, que veio como uma assistência técnica deve vir, equipada com os mais modernos aparelhos para fazer variados testes de ruídos.
  A máquina foi totalmente desmontada e diversas peças, que poderiam ser a causa do problema, foram    sendo substituídas.
Ao cabo de uma semana a máquina estava novamente montada e foi ligada, diante de grande expectativa. Aos poucos a máquina de fazer barulho, pôs-se em movimento. Logo depois o ruído era quase insuportável, a máquina voltara a funcionar! “É música para meus ouvidos” suspirava aliviado Mr. Thackeray.
O serviço foi dado por encerrado, o técnico cobrou pelas peças e mão de obra Cr$ 1.000,00 (mil cruzeiros, veja como a fábula é antiga). Mr. Thackeray quase cai de sua cadeira de balanço ao ler a fatura, apesar do nome inglês era um brasileiro, exclamou indignado, e fez as reclamações que se costuma fazer nessas horas, “Não pago, isso é um absurdo, hoje em dia o operário quer ganhar tudo num só dia, etc. etc.” Como também era de praxe, o técnico fez uma redução de 10% e a negociação chegou a bom termo. Mr. J.P.Thackeray ficara satisfeito com sua habilidade para fazer bons negócios, gostava de levar vantagem em tudo.
O industrial ainda repimpava-se em sua cadeira de balanço a ouvir fazer barulho a máquina de fazer barulho, quando percebeu a redução dos ruídos, estertores mecânicos, intervalos de silêncio cada vez maiores, até o colapso final. A máquina de fazer barulho era um silêncio só!
Um outro técnico foi chamado, fez algumas perguntas sobre sintomas do desarranjo, tempo de aquecimento, cheiros, etc. Abriu as tampas do equipamento, olhou em seu interior, tocou em algumas peças, ligou a máquina que logo começou a se sacudir em convulsões de epilepsia mecânica. Desligou-a, ficou alguns minutos a olhar aquelas vísceras metálicas. Depois, tirou do bolso uma pequena chave de fenda, enfiou-se por debaixo daquele monte de ferragens, resmungou alguma coisa ininteligível e apertou um parafuso. A máquina foi ligada e voltou a fazer barulhos extraordinários, O técnico ali ficou durante uma hora e como nenhuma anormalidade aparecesse nesse período, deu por finda a tarefa. Voltou no dia seguinte para rever a máquina, que continuava a fazer barulho incansavelmente, e apresentou a conta de seu trabalho, mil cruzeiros.
“- Mil cruzeiros por apertar um parafuso! E em menos de uma hora, isto é um assalto!”
Mr. Trackeray soltava fogo pelas ventas. O técnico esperou que o incêndio se apagasse e perguntou, apaziguador:
“- Quanto lhe cobrou o técnico anterior?”
“- Este mesmo preço, mas foram sete dias de trabalho! E além da mão-de-obra incluiu aí o custo das peças novas!”
“- Pois não estou lhe cobrando peças novas, meu caro Mr. Justus P.Trackeray. Veja os itens discriminados da nota. Para apertar o parafuso estou lhe cobrando apenas dez cruzeiros. E novecentos e noventa cruzeiros por saber qual parafuso precisava ser apertado”.
O industrial, depois de uns resmungos abriu a carteira e pagou os mil cruzeiros, dando-se por satisfeito por não ter sido cobrado pela lição que aprendera. A lição do KNOW HOW, do saber como fazer, que não pode ser medido pela quantidade, mas pela qualidade do trabalho.                                                                                                 
                                                   
                                                         Paulo José               
Rio, 28 de JUL de 2014    

quarta-feira, 23 de julho de 2014

O MOURO DE VENEZA


                     Aqui vou eu, como sempre atrasado no uso das formas contemporâneas de comunicação. Após mais de 20 anos de resistência às redes sociais, twitters, facebooks, sites, blogs, instagrams e outras expressões de uso corrente, entrego os pontos e dou início a este blog que me fará menos secreto e mais parlapatão e cheio de prosa, com fingida intimidade como se esta página fosse apenas mais uma no meu cotidiano de blogueiro. Aproveito a deixa para diariamente ir postando textos, crônicas, perfís de pessoas queridas, opiniões esculhambativas carregadas  do mau humor da leitura dos jornais no café da manhã. 
                   
                         Muitos textos serão novos, escritos no dia de sua 
publicação, outros estavam em repouso no fundo do computador, escapando assim de sua provável morte por vírus, como por 
exemplo esta crônica amorosa, escrita em 2007, sobre meu querido Sebastião Prata,
                           UM CERTO GRANDE OTELO

                    Em toda minha vida cruzei várias vezes com Sebastião  Bernardes de Souza Prata. Mais do que encontros casuais foram aproximações que nos tornaram cada vez mais Amigos, assim, com A maiúsculo.  Que o digam minhas filhas, que adoravam tê-lo em nossa casa, que com seu metro e meio de altura, mais do que uma simples pessoa, era para elas um elfo, um gnomo, um duende encantado e encantador.
                     Eu já o conhecia como ator de Moleque Tião, como autor de diversos sambas em parceria com Herivelto Martins e outros; sabia que filmara com Orson Welles, que declarara ser ele o maior ator negro do mundo, até que um belo dia, excursionando pelo sul do Brasil, Otelo deu com os costados em Bagé! 
  
                    MEU PRIMEIRO ENCONTRO

                    O ano? Lá por 49 ou 50. O local?  Bagé, Cine Capitólio, a matinê de um domingo especial composto por palco e tela, como anunciava o serviço de alto-falantes A Voz de Bagé. Na tela, “Alô, Alô Carnaval”. No palco, alguns artistas da Rádio Nacional, e a principal atração, o inigualáaaaavel, o insuperáaaaaavel, o Graaaande Otelo! O inigualáaavel entrou em cena jogando io-iô, mania nacional na época, e depois de ovacionado, lançou um desafio: "um prêmio de mil cruzeiros para quem fizesse com o io-iô tudo o que ele faria e algo mais, que ele 
não pudesse fazer! Logo  um garoto subiu ao palco, desafiador. Na platéia, grande expectativa.
                    Para começar, Otelo fez um simples desce-e-sobe que o desafiante imitou. Aos poucos os movimentos foram ficando mais complexos e o bageense respondia tal-e-qual. O povo delirava. Otelo errou um movimento e o bageense imitou o erro. A platéia toda no “já-ganhou”. O barbante do io-iô de Otelo rebentou. Suspense. Imperturbável, tira outro io-iô do bolso, e começa rolamentos do io-iô pelo chão, que agora parecia um cachorro amestrado. Otelo dizia “Vai!” e o io-iô ia, ordenava ‘Pára!” e o bichinho ficava parado, imóvel. Otelo dizia “Vem!” e o cachorrinho, digo, o io-iô, voltava correndo e ia se aninhar na sua mão. E depois parecia um pássaro que voava em círculos ao redor de sua cabeça. A essa altura o desafiante já havia desaparecido. Até que o teatro ficou às escuras, o io-iô ganhava luzes e cores, noite estrelada, e surgiu um segundo io-iô, ainda mais luminoso, e estrelas cadentes, cometas, fogos de artifício saiam das mãos  mágicas daquele pequeno duende que ainda iria deslumbrar tantos adolescentes em tantos Bagés por todo este Brasil a fora.
No dia seguinte, no colégio onde eu estudava, as aulas foram suspensas e fomos todos reunidos no teatro, onde o Padre Diretor orgulhosamente anunciou a presença de um ex-aluno que se tornara um dos maiores artistas de nosso país. E quem entra no palco? Claro que Grande Otelo! E junto com a admiração apareceu a identificação. Como ele, eu era aluno salesiano, como ele eu me apresentava em todos os eventos do colégio, declamando, cantando e representando. Naquele dia, o Moleque Tião havia inoculado em mim o vírus do palco como espaço natural para se viver.                                         Muitas outras vezes nos cruzamos mas foi Macunaíma, filme no qual dividíamos o personagem, que estabeleceu vínculos definitivos, intimidade e cumplicidade. No começo,  foi difícil  contracenar com meu ídolo, principalmente numa cena em que eu devia bater na cabeça dele, para que ela ficasse chata como a de um nordestino, enquanto dizia: “cresce logo, meu filho,que é prá ir prá São Paulo ganhar muito dinheiro”. Mas eu batia timidamente, Joaquim reclamava da falta de energia até que o próprio Otelo resolveu o impasse: “Você leu o roteiro, não leu? Está escrito para bater, então bata, mas bata com força mesmo, senão fica falso!” Tomei coragem, dei-lhe uns tapões na cuca, e isso selou definitivamente uma grande amizade.

                     Em nossas viagens com Macunaíma cantávamos uma música composta por ele, com citação do Praça Onze, do Herivelto Martins e que nunca foi gravada. Um inédito que aqui vai para recordar mais uma vez o enorme Grande Otelo.
Fazer Carnaval com quem
Olho e não vejo ninguém
Dodô (?) desapareceu
Claudionor foi embora
E Laurindo morreu .

Saudades do Carnaval de 43
Se eu pudesse
Eu cantava outra vez:
“Vão acabar com a praça Onze...”
Tempo bom,
Que não volta mais
Saudades
                                                           De outros carnavais.
Tempo bom
Que não volta mais
Saudades
De outros tempos iguais.
Tempo bom
Que não volta mais,
Saudades...

UMA AVENTURA VENEZIANA

                    Joaquim Pedro, o autor de Macunaíma, estava proibido de sair do Brasil por conta de uma manifestação contra a ditadura militar na abertura da reunião da OEA, no Hotel Glória. Então fomos convidados,  Dina Sfat, Otelo e eu, para representar o filme em Veneza. E lá fomos nós.
                    No aeroporto, um vaporeto nos transportaria até o hotel do festival.  Assim que descemos do avião e entramos no saguão do aeroporto uma voz potente e  bem enunciada começou a chamar pelos alto-falantes:

                    “ - Signore Grande Otelo!...Signore Grande Otelo!   
                  E já começava um zum zum zum, uma certa agitação. Mas não foi difícil entender o que estava acontecendo. Afinal, o Otelo de Shakespeare era conhecido como o Mouro de Veneza e quatro séculos depois estava ele de volta, ao que parece com todas as honras, dada a solenidade com que era chamado.
          Signore Grande Otelo...rivolgersi al posto de informazioni...
               Aumentava a curiosidade e o balcão de informações ia ficando cada vez mais cheio de passageiros que olhavam para cima, talvez imaginando um Otelo enorme, taurino, gigantesco. 
               Signore Grande Otelo!!!...Ninguém olhava para baixo onde, entre Dina e eu, caminhava a passos tão largos quanto podia, o pequeno Grande Otelo. E olhem que ele vestia um casaco vermelho, calça azul, chapéu  verde com uma pluma multi-colorida. Chegando ao balcão, Otelo, na ponta dos pés, exclamou com voz aguda:
           - Sono io...
           - Comm’e?
     - Sono io il Signore Grande Otelo...E com plena voz, reafirmou:  - Il Signore Grande Otelo, sono io!...
                    E aí foi um gargalheiro, e depois aplausos e já foram nos conduzindo para o embarcadouro, e foi com um salto esperto de Macunaíma que Otelo se aboletou no motoscaffo. Como um bom augúrio, depois de quatro séculos, o grande Otelo voltava a Veneza.  
                    E mais uma vez aplausos e risos acompanhavam nosso Otelo, amado por todos os que conviveram com ele. Que o digam minhas filhas, que adoravam tê-lo em nossa casa, que com seu metro e meio de altura, mais do que uma simples pessoa, era para elas um elfo, um gnomo, um duende encantado e encantador. 
                       Tempo bom
                           Que não volta mais
                                     Saudades
De outros tempos iguais.
            Tempo bom
               Que não volta mais,
                               Saudades...

                                                                  Paulo José