Toda vez que alguém pedia para ele explicar a origem daquele
estranho, mas simpático, sobrenome, Paulo César Peréio primeiro dizia tratar-se
de um apelido e não um nome de família, depois contava sua origem. Era assim. O
pai levantava o pequeno Peréio, que teria uns dois anos e o jogava para o alto
exclamando: “Vevéio Peréio Péio tem cara
de nego véio!” O menino se regalava rindo muito, não importava quantas
vezes a brincadeira fosse feita. Até o dia em que havia se tornado pesado
demais para aquele jogo. Mas ficara o apelido Peréio e se desenvolvera nele o
hábito, ou a qualidade, de jogar tudo para o alto, sem medo de voar nem de
recomeçar a vida quantas vezes fosse necessário. Peréio era, e continua sendo nosso
mais autêntico outsider, em quem se esconde uma ternura que a aparência mal
humorada não consegue esconder.
Peréio é um
santo às avessas.
NAQUELE TEMPO PORTO ALEGRE
ERA UMA PEQUENA GRANDE CIDADE.
HOJE É UMA GRANDE
PEQUENA CIDADE. Mário Quintana.
Quando eu fui para Porto Alegre, no final dos anos cinqüenta,
Peréio já morava na Tomás Flores,
primeira rua depois da Barros Cassal, onde passei a morar. Hoje isto não
quer dizer nada mas naquele tempo as
ruas tinham uma significação muito forte. Os grupos de adolescentes eram
definidos pelas ruas, a turma da Barros, a turma da Tomás Flores, da Garibaldi, da Santo Antonio. Cada rua era um
bando e havia uma certa rivalidade entre elas, às vezes com verdadeiras guerras
campais. Peréio e eu éramos vizinhos mas de gangues diferentes. É como se
morássemos a quilômetros de distância um do outro. Foi o teatro que nos
aproximou. Ambos queríamos, precisávamos praticar alguma transgressão. Como não
era de nossa índole atear fogo em mendigos, nosso limite era afanar um litro de
leite, que era distribuído em garrafas colocadas nas portas das casas. E o
teatro era a concretização de uma Ergela Otrop, uma Porto Alegre lida ao
contrário, transgressiva.
Mario de Almeida, diretor paulista que fora dirigir “O Macaco da
Vizinha” foi quem nos aproximou definitivamente. Pereio era quatro anos mais
moço do que eu, Mário alguns anos mais velho. Mas fazíamos um estranho trio, no
qual as diferenças eram o que mais nos aproximava. Um tinha o que faltava aos
outros e havia uma admiração mútua, um sentimento recíproco que se chama
simplesmente amizade. Nós éramos amigos. Essa identidade criou
vínculos eternos. Podemos ficar muito tempo sem nos ver mas cada novo encontro
é como se estivéssemos juntos, sempre.
Se há estórias divertidas? Muitas. Cômicas, patéticas,
ridículas, emocionantes.
Quando Luis Carlos Maciel dirigiu
“Esperando Godot”, de Samuel Beckett, ao lado de Lineu Dias e do próprio Maciel, lá estávamos nós, Pereio,
Mário e eu.
Peréio, que tinha apenas 17
anos, fazia o menino que vem trazer um recado aos dois vagabundos. Seu texto
era apenas: “O Senhor Godot manda dizer
que hoje não pode vir, mas que amanhã virá com toda a certeza”. Uma pequena
frase, dita duas vezes, nos dois atos, mas decisiva e que originava polêmicas
sobre o que significaria Godot. Seria
God, Deus? Ou um anagrama de Dog, Cão?
Beckett jamais quís explicar. Peréio também não.
Tínhamos
um teatro na rua Gen. Vitorino, o Teatro de Equipe, onde fizemos um bom
repertório teatral: “A Almanjarra” e “Amor por Anexins” ambas de Arthur
Azevedo, “A Farsa da Esposa Perfeta” de Edy Lima, “Poetas e Poemas” e “Rondó
58”, espetáculos de poesia, “Romeu e Julieta” de W. Shakespeare. No sub-solo o
Bar do Teatro, sob a direção do Peréio, onde rolavam os dados num empolgante
Seven Eleven, a dinheiro. E o sucesso de todas as noites, o melhor scotch Black
Label ao preço de um Old Eight nacional, sem esperar 12 anos para ser
envelhecido em tonéis de carvalho. A distilaria funcionava no quartinho das
garrafas. Equipamento: apenas uma seringa de injeção.
Juntos os três novamente,
Mário, Peréio e eu, em “Romeu e Julieta”, de W.
Shakespeare. Mário dirigia, e tocado pela magia do bardo de
Stratford-upon-Avon, sofria da mesma paixão do jovem Montecchio: o amor de
Julieta, no caso a atriz. Enquanto Mário penava, nossa professora de dança, uma
mestra russa, Marina Fedossejeva, nos obrigava a andar com a elegância de duas
cegonhas, que seria a maneira clássica do ator se movimentar em cena. Era
assim: levar um pé à frente em ponta, tocar no solo e só depois baixar todo o
pé até o calcanhar. A seguir, proceder
da mesma forma com o outro pé. Ponta, calcanhar, ponta, calcanhar, ponta,
calcanhar, durante todo o espetáculo.
Mas o momento culminante era quando Teobaldo e Mercutio, Peréio e eu, se
batiam em duelo mortal. Andar na pontinha dos pés, tornou-se momento de graça e
beleza diante da cena dos dois cruzando
armas com a destreza de dois ouriços caixeiros enquanto a Sagração da Primavera
de Stravinski explodia no mais alto volume e Mario garantia o efeito geral de
ferocidade da cena, com um cabo de vassoura agitando freneticamente a água
salgada das barricas que acendiam e apagavam aleatoriamente as luzes do palco. (*)
Assim Mário de Almeira criava com violência e desespero, pelas abruptas
alterações da luz, a morte de Mercutio. Bob
Wilson não faria melhor.
Depois disso, não havia mais nada que pudesse nos desconcentrar
em cena. Estávamos prontos para qualquer tipo de teatro e o batismo comum foi
como um pacto de índios que se cortam os pulsos e misturam seus sangues.
E desde então Paulo César Christofoletti Hugo de Campos Velho,
Paulo José Gómez de Souza e Mario Coelho Pinto de Almeida tornaram-se irmãos
para sempre. PJ
Paulo José revisto
em 20 de agosto de 2014
(*)As barricas com água salgada eram uma versão primitiva dos
variadores de intensidade da luz usando o princípio da eletrólise.
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