Brevíssimo resumo de nossa história nos idos de abril de
1964.
O país.
Dias de grande efervescência
política. Os movimentos populares, organizações estudantis e sindicatos das
cidades e do campo, exigiam transformações profundas em nosso país. A vasta classe média não abria o bico. Mas o
discurso inflamado de Jango Goulart,
Presidente da República, no comício do dia 13 de março, na Central do Brasil,
no Rio de Janeiro, nos dava a certeza que o exemplo de Cuba frutificaria, o
capitalismo estava com seus dias contados e a utopia socialista tornava-se
realidade possível, palpável, concreta.
Nós.
Esses dias vibrantes nós os
passávamos no Teatro de Arena de São Paulo, fazendo a peça de Gianfrancesco
Guarnieri “O Filho do Cão”. Eu dirigia e atuava ao lado do próprio autor,
Gianfrancesco Guarnieri, e Juca de Oliveira, Isabel Ribeiro, Dina Sfat, João
José Pompeo, Anamaria Cerqueira Leite e Abraão Farc. Flavio Império, também
diretor do Arena, assinava a cenografia.
Até que um dia, mais precisamente no
dia 31 de março de 1964, começava uma movimentação militar em Minas contra o
Governo de Jango, encabeçada pelo General Mourão que se auto-definia com sendo
“apenas uma vaca fardada”. Aquilo parecia um autêntico primeiro de Abril, um
golpe pífio, uma mentira de pernas curtas. Mas logo as coisas foram mudando, e
os generais fiéis a Jango, inclusive o Amaury Kruel, Ministro da Guerra,
aderiram ao golpe, derrubaram o Presidente proclamando uma revolução redentora
para impedir que o Brasil viesse a se tornar um país comunista. O exército
tomou conta das ruas e começava a temporada de caça aos subversivos. Para nosso
espanto o dragão da maldade era uma hidra de sete cabeças e apenas uma delas
havia sido atingida. A classe média, outrora maioria silenciosa, agora faladeira
e rezadeira marchava com Deus, pela Pátria e Família.
Poucos dias depois do golpe militar, estávamos no teatro
apresentando “O Filho do Cão” do Guarnieri. Casa lotada, estranha agitação na plateia,
da bilheteria vem a notícia: a rua está cercada por policiais e a ordem é
prender o elenco no final do espetáculo. O Arena tinha uma só porta para
entrada do público e saída dos atores. Um beco sem saída. A peça chega ao fim,
a plateia aplaude e o elenco não vem agradecer. Lá fora cái uma chuva fininha e
misturado ao público, protegidos pelas capas, chapéus e guarda-chuvas, o elenco
escapa incólume. Os homens de terno escuro e gravata ficam ainda um tempo,
desolados com a perda das suas presas. Também, quem mandou usar óculos escuros
à noite?!
CACILDA BECKER ENTRA EM
CENA
O Teatro de Arena foi fechado e o DOPS começava a interrogar
pessoas da classe teatral procurando identificar seus subversivos. Cacilda
Becker foi a primeira a ser ouvida como uma atriz sabidamente não comunista e
que poderia identificar os elementos da classe teatral ligadas a organizações
de esquerda. Cacilda, assistida pelo diretor da Comissão Estadual de Teatro,
Nagib Elchmer, teve uma atuação brilhante, segundo relato do próprio Nagib. Foi
de uma candura e sonsice extraordinárias. Interrogada sobre vários atores,
alguns sabidamente ligados ao Partido Comunista, respondia com elogios à sua
vida profissional, falava de peças, personagens que haviam feito e ignorava
perguntas de ordem pessoal ou política. Alegava estar sempre tão ocupada com
ensaios e espetáculos que não lhe sobrava tempo para se interessar por política
nem freqüentar reuniões políticas ou sociais. Mas saiu de lá com informações de
que os diretores do Arena, Flavio Rangel e outros artistas seriam presos. Como
ainda não se sabia o grau de violência da repressão, podia acontecer o pior, todos deveriam desaparecer
pelo menos até que se entendesse melhor o que estava acontecendo.
Foi assim que no dia
seguinte ao interrogatório de Cacilda estava eu dentro de um automóvel, levado
para não sabia aonde, por amigos ligados a organizações de esquerda
encarregados de proteger pessoas ameaçadas pelo golpe militar. O carro deu
várias voltas pelo centro, parou duas ou três vezes, alguém descia para
telefonar, voltava dando novas ordens em voz baixa, num clima de inquietante
conspiração. Finalmente chegamos a um edifício da Avenida Paulista, esquina com
o Trianon. Meu acompanhante do assento traseiro desceu com minha bagagem,
entrou no prédio, voltou depois de alguns minutos, abriu a porta e me disse que
eu ficaria ali, na casa de pessoas amigas. A portaria era familiar, o elevador
também e quando cheguei ao último andar já tinha certeza do meu destino. Foi
com enorme alegria que vi a porta se abrir e ali estavam Cacilda Becker e
Walmor Chagas dando as boas-vindas. Ao entrar na sala vejo Flavio Império, meu
querido amigo que também havia sido trazido por outros anjos protetores. Logo
depois chegava Dina Sfat para me visitar e tivemos um encontro de forte emoção.
As notícias eram desencontradas, ninguém sabia ao certo o que estava
acontecendo. Sabíamos que devíamos ficar ali, Flávio e eu, por algum tempo,
felizmente junto de pessoas tão generosas e solidárias. Flávio Rangel foi para
o Rio de Janeiro onde tinha apartamento, Augusto Boal fora mandado para o
interior de São Paulo, se não me engano
para uma fazenda da família Mesquita, donos do jornal O Estado de São Paulo. E
Juca de Oliveira e Guarnieri, coitados, mandados pelo trem da morte para a
Bolívia!
O apartamento de Cacilda e Walmor era muito amplo, com um
enorme terraço que nos permitia ter uma vista geral da cidade. Uma bela casa no
alto de um prédio, que davam a Cacilda e Walmor uma imagem de atores bem
sucedidos. Tinham um grupo permanente funcionando no teatro da Federação
Paulista de Futebol, na Brigadeiro Luis Antonio, o Teatro Cacilda Becker.
Haviam feito excursões pelo Brasil de grande sucesso. Em 1958 eu morava em
Porto Alegre e o TCB, Teatro Cacilda Becker, recém fundado, fez lá uma
temporada de quase quatro meses, com um repertório de seis peças, “O Protocolo”
de Machado de Assis, “Pega-Fogo” de Jules Renard, “Mary Stuart” de Schiller, “O
Santo e a Porca” de Ariano Suassuna, “Jornada de um Longo Dia Para Dentro da
Noite” de Eugène O’Neill e “Santa Marta Fabril” de Abílio Pereira de Almeida.
Todas as peças dirigidas pelo Ziembinski. A estréia da temporada gaúcha no
Teatro São Pedro, com “O Protocolo” e “Pega-Fogo” foi inesquecível, com uma
platéia aplaudindo delirantemente por mais de vinte minutos. Foi a maior ovação
a que assisti em toda minha vida. A temporada continuou seu sucesso em cidades
do interior gaúcho até chegar em Montevidéu, sempre lotando os teatros, com
rasgados elogios da imprensa uruguaia.
Essa temporada, com um extenso repertório, grande elenco
seria inimaginável nos dias de hoje. Mas naquele tempo o teatro ocupava um
lugar importante na vida cultural do país. Grandes companhias permanentes se
multiplicavam no Rio e São Paulo, e havia movimento teatral significativo em
Salvador, Recife, Belo Horizonte e Porto Alegre.
Mas isso não impedia que às vezes grandes revezes colocassem
em risco a continuidade de trabalho dos teatros estáveis. Em 1963 o Teatro
Cacilda Becker amargava um tremendo fracasso com “César e Cleópatra”. Isso em
um espetáculo dirigido por Ziembinski, com Fredy Kleemann, Kleber Macedo e
Jorge Chaia, fundadores da companhia, além de atores como Raul Cortês, Graça
Mello, Stênio Garcia e Plínio Marcos. Para pagar dívidas Cacilda e Walmor
haviam vendido até a Kombi que servia a companhia. Restou-lhes o apartamento
onde continuavam cheios de otimismo promovendo todas as segundas–feiras leitura
de peças inéditas de autores brasileiros. Participavam das leituras atores como
Fredy Kleemann, Kleber Macedo, Raul Cortez, Gianfrancesco Guarnieri, Dina Sfat,
Isabel Ribeiro, Juca de Oliveira, Graça Melo, Benedito Corsi, diretores como
Gianni Ratto, Flavio Rangel, Augusto Boal, autores como Jorge Andrade, Bráulio
Pedroso. No amplo terraço improvisava-se um auditório ao ar livre, platéia com
umas vinte ou trinta cadeiras, mesa para os leitores, um bar com bebidas, água
e café e algumas vezes com o cenário extra de uma bela lua num céu estrelado.
Assim, na primeira segunda-feira após nossa mudança, houve
leitura de uma peça do Bráulio Pedroso. Flávio e eu, na nossa condição de
clandestinos acompanhamos a leitura e debates protegidos pelo escuro da sala
contígua ao terraço. Dina, sentada na última fila e bem próxima de onde
estávamos ficava de lá pra cá, ora com a gente, ora com a assistência da
leitura. Após a apresentação da peça houve um debate que se estendeu até as
duas horas da madrugada.
Na outra segunda-feira, já cansados de ser Anne Frank,
resolvemos aparecer na leitura sem dar a entender que estávamos morando ali. E
os convidados eram todos amigos. Foi um encontro muito emocionante porque
apesar da insegurança e o medo, todos continuavam vivos, cheios de planos e com
muita energia para responder à agressão sofrida. E assim fomos levando nossas
primeiras semanas. As rádios e televisões estavam sob censura e as poucas
notícias que recebíamos eram as trazidas por Dina, que me visitava todos os
dias e outras trazidas por Cacilda e Walmor. Começávamos a viver a rotina da
casa, com a companhia permanente de Fio, um pastor alemão que era nosso
guardião. Todas as noites Walmor saia para o passeio diário do cão, dando a
volta no Trianon e regressando meia hora depois. Naquele tempo as ruas e
parques eram lugares seguros, não havia violência urbana, assaltos. Mas havia
esta outra formas de violência, mais cruel, mais arbitrária, a da repressão
política, primária, irracional, estúpida.
Depois de quatro semanas de agradável reclusão, como as
notícias eram tranqüilizadoras para o nosso lado, a classe teatral não era tão
perigosa assim nem o golpe militar havia sido dado por nossa causa, Flávio e eu
voltamos para nossas casas. Continuamos participando das leituras das
segundas-feiras onde cada vez mais a política
era o tema principal. Um forte movimento de resposta à agressão sofrida
crescia em todo o país. Os anos que se seguiram foram admiráveis, o teatro, o
cinema, a música, as atividades estudantis nunca haviam sido tão pujantes. Até
o dia 13 de dezembro de 1968, quando o Ato Institucional n. 5 fechava o
Congresso, acabava com as liberdades individuais, o direito de reunião, o
hábeas corpus, a inviolabilidade do lar, e começavam os anos de ferro que
entrariam pelos anos setenta pondo fim a todo aquele movimento teatral que
começara nos anos cinqüenta. Acabavam os teatros estáveis, os teatros de grupo,
o Cinema Novo e nossas vidas tomaram rumos diferentes.
Fui morar no Rio de Janeiro, entrei para a televisão e passei
a ter contatos muito esporádicos com a gente de teatro de São Paulo. Mas até
hoje, quando passo pela Paulista na esquina do Trianon, me vem à memória aquele
gesto até certo modo surpreendente daqueles dois que, sem fazer alarde de suas
posições políticas, haviam praticado um ato de
solidariedade como só as pessoas com grandeza de alma são capazes de
praticar.
Cacilda e Walmor, obrigado para sempre!
Paulo José - Rio,
11 de setembro de 2002.
Rio, 15 de agosto de 2014.
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