terça-feira, 5 de agosto de 2014

BREVE PREFÁCIO

Como agora sou um blogueiro, vou ao fundo do bau (computador) e começo a pôr para fora textos de dois anos atrás,  contos breves,  poemas de minuto, perfis de pessoas que admiro, fábulas amorais, estórias imorais, crônicas morais, enfim tudo o que acho que merece um mínimo de visibilidade.
 Os possíveis anacronismos espero que sejam anulados pelos comentários sobre o mundo  de hoje, real e  fantástico, no qual vivemos.
Qual é mais real, o mundo do tigre que devorou a criança no zoo ou

                                                              o mundo dos tigres de Borges?

DE PANDORGAS, PAPAGAIOS, PIPAS, RAIAS E ARRAIAS



DO CORREIO DO POVO
Lavras do Sul – Do correspondente local - Deu entrada ontem à noite no Hospital Municipal deste município o cidadão Paulo Souza acidentado quando soltava pandorga no campo do senhor Gratula Munhoz. Testemunhas que presenciaram o acidente disseram que o referido rapaz vestia sandálias de dedo e corria de costas quando perdeu o equilíbrio e foi ao chão causando fraturas em diversas costelas, segundo laudo do plantonista de plantão. O jovem deverá guardar o leito durante uma semana e o quadro somente estará normalizado dentro de seis meses. Não se recomendou o uso de gesso pois o último paciente que teve o peito imobilizado veio a falecer por absoluta falta de ar.



DE COMO FRATUREI TRÊS COSTELAS SOLTANDO PANDORGA. OU PIPA. OU PAPAGAIO. OU RAIA


                    Eu gostava do som: Pan-dor-ga. E papagaio, e raia ou pipa. Mas o mais sonoro era “Pandorga”. A pandorga. Gostava. De fazê-las. E gostava mais ainda de soltá-las no vento forte da primavera. Tínhamos, eu e meus irmãos, uma pandorgaria, uma oficina de pipas na garagem, e nos fins de tarde íamos, de banho tomado, fazer os consertos do dia em nossas pandorgas. Havia pressa em colar as partes danificadas, com GRUDE caseiro de cola de polvilho ou de farinha de trigo, antes que o sino tocasse chamando o povo para a SOPA.

DO GRUDE
         Ingredientes: Um recipiente que vá ao fogo, uma colher de pau, fósforos, isqueiro, fogão  (ou qualquer outra coisa que produza chama, calor), farinha de trigo ou polvilho, água.

                  Modo de preparar: leve ao fogo o recipiente com água. Antes, acenda o fogo com o fósforo. Quando a água estiver morna, isto é, em torno dos 30º, deitar a farinha, ou polvilho,  aos poucos, mexendo sempre, com colher de pau para que esta se dissolva e não empelote. Continuar mexendo até o ponto de fervura. Retirar do fogo e testar sua qualidade  pondo um pouco do grude na gema do polegar direito (os canhotos podem usar o polegar esquerdo) e movimentar os demais dedos como pinças que vão de encontro ao polegar opositor. Um bom grude deve ter resistência ao desgrude. Seca rapidamente e se limpa facilmente as mãos com um pano umedecido.

da sopa, ou fervido, ou puchero.
                    
                Tinha caldo de carne feito com espinhaço de cordeiro ao qual se acrescentava batata inglesa, batata doce, cenoura, couve, abóbora, repolho, ovos cozidos, sal a gosto e, o melhor de tudo, espigas de milho cortadas em roletes e que eram servidas à parte. Doña Carmen, de pé, ao lado da mesa, servia a sopa, prato a prato, ela mesma. Ficava zangada se alguém rompia o ritual, antecipando-se um rolete de milho, ou um pedaço de carne.
                 
                 Fazia-se silêncio, era melhor mastigar do que falar, e todos se ocupavam com a sopa que era marca registrada do Cerro Branco, fazenda no município de Lavras do Sul, onde passávamos os verões.
            
               Havia uma certa pressa em voltar à garagem, quase sempre com plena ocupação do pronto socorro de papagaios. Eram variados os problemas, quase sempre originais, isto é, de origem, de nascença.
                    Para isso é preciso entender um pouco de pandorgas.

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UM POUCO SOBRE PIPAS,       PAPAGAIOS, RAIAS, ARRAIAS E PANDORGAS

                            Desde l952 estamos estudando o comportamento dos papagaios e pipas. Foi nesse verão que criamos a Faculdade Cerrobranquense de Pandorgas, Papagaios, Pipas e Raias dos Irmãos Gómez de Souza (todos ótimos alunos). A.W. Schimmelpfenning (1889-1968) criou a 1ª associação de pandorgueiros, em Frankfurt, depois em Paris, a partir de 1920, onde consolidou alianças com clubes recreativos de todo o mundo. Hoje, são 116.345 entidades que formam a Federação dos Clubes e Associações dos Amigos dos Papagaios, Pipas e Pandorgas. Em Lavras, sem incluir o 2º distrito de Ibaré, há 37 corporações formadas por Souzas, Teixeiras e Bulcões, com a exclusão dos Freitas, Silveiras, Saraivas e Ferreiras, que se recusam a pertencer a qualquer associação que os aceite como sócios.
                    Voltando à vaca fria, essa variedade de entidades criou diversos artefatos voadores: a pandorga trenó, a pandorga dirigível, a pandorga F15 (que vale por um bifinho). Destas, vale destacar a pandorga caixa, caixote ou bidê que tem uma forma sui generis. Assemelha-se a um criado mudo, uma espécie de caixote ou bidê, um prisma retangular. Citaremos apenas de passagem os “voadores” de Pompéia, que nasciam como Príamo, portando um falo extraordinário, objeto de culto à virilidade.
                    Eram muitos os problemas de navegação aérea. Havia  as suicidas, rodando, rodando e, em espiral, estatelando-se no chão. Havia as porra-loucas, as sossegadas, as belicosas, as melífluas, todas precisando de cuidados.
                    Pandorga é que nem gente. Nasce inacabado. Leva algum tempo até firmar-se nas próprias asas e adquirir autonomia.  Ao apresentar problemas é retirada de circulação e levada para o pandorgário. Lá, é submetida a uma bateria de exames até que se localize as causas do seu mau funcionamento.
                        A instabilidade pode vir da rabiola curta.
                       A dificuldade em subir aos céus pode se originar em rabiola muito longa e pesada.
                     A instabilidade pode vir da guia onde se prende a corda. A tendência a se mover sempre para a direita, antes de ser um problema político, pode ser  falta  de bilateralidade equilibrada, falta de simetria, um lado maior e mais pesado que o outro.
                    E há ainda enormes diferenças de temperamento,  que irão definir o caráter de cada uma. Pacíficas, guerreiras, místicas, maternais, enfim tão inqualificáveis quanto as mulheres.
                     Para que tenham som, coloca-se um roncador, que é uma tira de papel celofane picotada e colada na parte superior da raia.      
                      Nas pipas militares, nos primeiros 5 metros de corda, contados a partir da pipa propriamente dita, cola-se cerol, que é vidro moído com cola, que lhes dá grande vantagem nos combates aéreos, quando as cordas se entrelaçam e se trava um duelo singular, do qual somente a mais forte, ou a mais equipada, sobreviverá sem danos.
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Finalmente O INCIDENTE
                    Foi assim:
                    Havia levantado cedo, vi nascer o sol atrás do Cerro da Mantiqueira lançando sombras compridas sobre a casa e o galpão. O vento levantava as plumas das avestruzes que rodeavam a cozinha disputando um pedaço de pão. Logo me ocorreu um pensamento que me saiu em palavras: “Dia bueno pra botar as pandorgas no céu”. E assim foi dito e assim foi feito. Logo depois, já estávamos, com chinela de dedo, soltando uma pequena pandorga com um desenho do Miró, lembrança de Barcelona. Beleza a facilidade com que se alçou mais alto do que os quero-queros, que voavam em círculo dando gritos estridentes como só os quero-queros sabem dar, fingindo estar a defender o ninho e, na verdade fazendo apenas uma manobra dissuasória, um falso anúncio para nos manter distantes dos filhotes. Depois foi a vez de um tigre chinês, vindo via Paris, também vocacionado para o vôo, que logo ficou à vontade balançando preguiçosamente a longa cauda e roncando como um tigre de papel. 
                    Mas o melhor ainda estava por vir. Miró e o felino já estavam a regalar-se no lago azul daquela manhã de carnaval quando Tiago e eu decidimos dar um salto de qualidade em nossa pandorgança. Abrimos a garagem e de lá trouxemos uma asa delta, com envergadura de 2 metros, feita com tecido de paraquedas, comando de duas manoplas, duas linhas cada uma, totalizando quatro linhas com mais de 30 metros de comprimento. Uma verdadeira arma de destruição em massa. Era a primeira vez que voaríamos em dupla, cada um segurando uma manopla. Ainda no chão, nosso inquieto bagual já queria ganhar altura, indócil como cavalo no partidor. A aventura prometia. A asa delta, impelida pelo vento, corcoveava como potro que quisesse livrar-se das rédeas que o detinham. Seu corpo batia desordenadamente nos obstáculos próximos. Havia uma ferocidade suicida naquela pipa que parecia preferir a morte ao cativeiro. Dando um pouco de linha conseguimos acalmá-lo  e enquanto acabávamos o trabalho de verificar a correção das linhas e o encontro destas com o corpo do bicho, ouvíamos seu resfolegar. Era  de se ver. Até nas pipas se nota a diferença da sorte... Miró e o tigre de papel compunham uma paisagem suave enquanto a fera de Miami era toda agitação e urgência.  
Uma variação do vento, agora mais firme, era o que faltava para o bicho subir. E veio. Foi uma ascensão quase vertical e demos um – “Hurrah! de vitória. Agora era só administrar a tensão das  cordas, dando um pouco de linha quando a força do vento nos parecia excessiva, encurtando-as quando a asa delta perdia altura. Tiago e eu nos desdobrávamos tentando controlar aquela besta fera que agora dava vôos rasantes sobre nossas cabeças, subia a 30 metros e se despencava fazendo uma  curva rente ao chão. Havia beleza nisso e conseguimos abrandar a raia que agora, passado o susto inicial, voava suave como uma gaivota.                         
De repente, uma lufada de ar quente  desequilibra a asa delta que cai velozmente pelo lado que eu tinha de manter esticado. Puxo os fios que continuam frouxos, preciso recuar, mais, mais, mais, estou numa descida, de costas, correndo aos saltos, o chinelo de dedo, ah o chinelo de dedo se prende no capim, a pandorga continua caindo, caindo o chinelo, a chindorga, o panelo, o capim, o aipim, o chão, o cão, vêm ao meu encontro, o baque surdo do absurdo baque, falta-me o ar, ouço um estrondo, CABOUM!, o dia vira noite assim, de repente, fogos de artifício relampejam dentro da minha cabeça.
                    O resto nem vale a pena contar. Apenas dizer que a brincadeira me custou seis meses de tratamento por três costelas fraturadas, inúmeras bolsas de gelo e de água quente e um chinelo de dedo inutilizado. Ainda me resta outro mas, o que se pode fazer com um pé de chinelo?                                                                        
                                                                                                                          Paulo José 
    
PENSAMENTO DO DIA: Quando urubu tá de caipora, o de baixo caga no de cima.                  
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Um comentário:

  1. Acredito que este blog dará panos para muitas mangas de livros...um e-book...um (ns) livro (s) impressos (s).

    Se um dia o senhor puder escrever sobre o Teatro de Sombras que fazia com seus irmãos e as brincadeiras com eles na casa de sua avó, ficarei muito grato!!!O período de sua infância, conforme lemos em "Algumas Histórias", é riquíssimo! Aqui há espaço para desbravar ainda mais este período tão singelo da vida!

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