segunda-feira, 28 de julho de 2014

MR. THACKERAY E O TAL DE KNOW HOW


                                                                                                
Esta é uma velha história que se passou numa indústria de, digamos, São Paulo. Uma máquina, dessas de fazer barulho, cheia de salamaleques, engrenagens, braços mecânicos, molas, dinamômetros e parafusos, começou a apresentar superaquecimento, lentidão progressiva, redução de ruídos até o silêncio total.  A máquina havia parado de funcionar.
Mr. J.P. Thackeray, o dono da máquina de fazer barulho logo chamou a assistência técnica, que veio como uma assistência técnica deve vir, equipada com os mais modernos aparelhos para fazer variados testes de ruídos.
  A máquina foi totalmente desmontada e diversas peças, que poderiam ser a causa do problema, foram    sendo substituídas.
Ao cabo de uma semana a máquina estava novamente montada e foi ligada, diante de grande expectativa. Aos poucos a máquina de fazer barulho, pôs-se em movimento. Logo depois o ruído era quase insuportável, a máquina voltara a funcionar! “É música para meus ouvidos” suspirava aliviado Mr. Thackeray.
O serviço foi dado por encerrado, o técnico cobrou pelas peças e mão de obra Cr$ 1.000,00 (mil cruzeiros, veja como a fábula é antiga). Mr. Thackeray quase cai de sua cadeira de balanço ao ler a fatura, apesar do nome inglês era um brasileiro, exclamou indignado, e fez as reclamações que se costuma fazer nessas horas, “Não pago, isso é um absurdo, hoje em dia o operário quer ganhar tudo num só dia, etc. etc.” Como também era de praxe, o técnico fez uma redução de 10% e a negociação chegou a bom termo. Mr. J.P.Thackeray ficara satisfeito com sua habilidade para fazer bons negócios, gostava de levar vantagem em tudo.
O industrial ainda repimpava-se em sua cadeira de balanço a ouvir fazer barulho a máquina de fazer barulho, quando percebeu a redução dos ruídos, estertores mecânicos, intervalos de silêncio cada vez maiores, até o colapso final. A máquina de fazer barulho era um silêncio só!
Um outro técnico foi chamado, fez algumas perguntas sobre sintomas do desarranjo, tempo de aquecimento, cheiros, etc. Abriu as tampas do equipamento, olhou em seu interior, tocou em algumas peças, ligou a máquina que logo começou a se sacudir em convulsões de epilepsia mecânica. Desligou-a, ficou alguns minutos a olhar aquelas vísceras metálicas. Depois, tirou do bolso uma pequena chave de fenda, enfiou-se por debaixo daquele monte de ferragens, resmungou alguma coisa ininteligível e apertou um parafuso. A máquina foi ligada e voltou a fazer barulhos extraordinários, O técnico ali ficou durante uma hora e como nenhuma anormalidade aparecesse nesse período, deu por finda a tarefa. Voltou no dia seguinte para rever a máquina, que continuava a fazer barulho incansavelmente, e apresentou a conta de seu trabalho, mil cruzeiros.
“- Mil cruzeiros por apertar um parafuso! E em menos de uma hora, isto é um assalto!”
Mr. Trackeray soltava fogo pelas ventas. O técnico esperou que o incêndio se apagasse e perguntou, apaziguador:
“- Quanto lhe cobrou o técnico anterior?”
“- Este mesmo preço, mas foram sete dias de trabalho! E além da mão-de-obra incluiu aí o custo das peças novas!”
“- Pois não estou lhe cobrando peças novas, meu caro Mr. Justus P.Trackeray. Veja os itens discriminados da nota. Para apertar o parafuso estou lhe cobrando apenas dez cruzeiros. E novecentos e noventa cruzeiros por saber qual parafuso precisava ser apertado”.
O industrial, depois de uns resmungos abriu a carteira e pagou os mil cruzeiros, dando-se por satisfeito por não ter sido cobrado pela lição que aprendera. A lição do KNOW HOW, do saber como fazer, que não pode ser medido pela quantidade, mas pela qualidade do trabalho.                                                                                                 
                                                   
                                                         Paulo José               
Rio, 28 de JUL de 2014    

quarta-feira, 23 de julho de 2014

O MOURO DE VENEZA


                     Aqui vou eu, como sempre atrasado no uso das formas contemporâneas de comunicação. Após mais de 20 anos de resistência às redes sociais, twitters, facebooks, sites, blogs, instagrams e outras expressões de uso corrente, entrego os pontos e dou início a este blog que me fará menos secreto e mais parlapatão e cheio de prosa, com fingida intimidade como se esta página fosse apenas mais uma no meu cotidiano de blogueiro. Aproveito a deixa para diariamente ir postando textos, crônicas, perfís de pessoas queridas, opiniões esculhambativas carregadas  do mau humor da leitura dos jornais no café da manhã. 
                   
                         Muitos textos serão novos, escritos no dia de sua 
publicação, outros estavam em repouso no fundo do computador, escapando assim de sua provável morte por vírus, como por 
exemplo esta crônica amorosa, escrita em 2007, sobre meu querido Sebastião Prata,
                           UM CERTO GRANDE OTELO

                    Em toda minha vida cruzei várias vezes com Sebastião  Bernardes de Souza Prata. Mais do que encontros casuais foram aproximações que nos tornaram cada vez mais Amigos, assim, com A maiúsculo.  Que o digam minhas filhas, que adoravam tê-lo em nossa casa, que com seu metro e meio de altura, mais do que uma simples pessoa, era para elas um elfo, um gnomo, um duende encantado e encantador.
                     Eu já o conhecia como ator de Moleque Tião, como autor de diversos sambas em parceria com Herivelto Martins e outros; sabia que filmara com Orson Welles, que declarara ser ele o maior ator negro do mundo, até que um belo dia, excursionando pelo sul do Brasil, Otelo deu com os costados em Bagé! 
  
                    MEU PRIMEIRO ENCONTRO

                    O ano? Lá por 49 ou 50. O local?  Bagé, Cine Capitólio, a matinê de um domingo especial composto por palco e tela, como anunciava o serviço de alto-falantes A Voz de Bagé. Na tela, “Alô, Alô Carnaval”. No palco, alguns artistas da Rádio Nacional, e a principal atração, o inigualáaaaavel, o insuperáaaaaavel, o Graaaande Otelo! O inigualáaavel entrou em cena jogando io-iô, mania nacional na época, e depois de ovacionado, lançou um desafio: "um prêmio de mil cruzeiros para quem fizesse com o io-iô tudo o que ele faria e algo mais, que ele 
não pudesse fazer! Logo  um garoto subiu ao palco, desafiador. Na platéia, grande expectativa.
                    Para começar, Otelo fez um simples desce-e-sobe que o desafiante imitou. Aos poucos os movimentos foram ficando mais complexos e o bageense respondia tal-e-qual. O povo delirava. Otelo errou um movimento e o bageense imitou o erro. A platéia toda no “já-ganhou”. O barbante do io-iô de Otelo rebentou. Suspense. Imperturbável, tira outro io-iô do bolso, e começa rolamentos do io-iô pelo chão, que agora parecia um cachorro amestrado. Otelo dizia “Vai!” e o io-iô ia, ordenava ‘Pára!” e o bichinho ficava parado, imóvel. Otelo dizia “Vem!” e o cachorrinho, digo, o io-iô, voltava correndo e ia se aninhar na sua mão. E depois parecia um pássaro que voava em círculos ao redor de sua cabeça. A essa altura o desafiante já havia desaparecido. Até que o teatro ficou às escuras, o io-iô ganhava luzes e cores, noite estrelada, e surgiu um segundo io-iô, ainda mais luminoso, e estrelas cadentes, cometas, fogos de artifício saiam das mãos  mágicas daquele pequeno duende que ainda iria deslumbrar tantos adolescentes em tantos Bagés por todo este Brasil a fora.
No dia seguinte, no colégio onde eu estudava, as aulas foram suspensas e fomos todos reunidos no teatro, onde o Padre Diretor orgulhosamente anunciou a presença de um ex-aluno que se tornara um dos maiores artistas de nosso país. E quem entra no palco? Claro que Grande Otelo! E junto com a admiração apareceu a identificação. Como ele, eu era aluno salesiano, como ele eu me apresentava em todos os eventos do colégio, declamando, cantando e representando. Naquele dia, o Moleque Tião havia inoculado em mim o vírus do palco como espaço natural para se viver.                                         Muitas outras vezes nos cruzamos mas foi Macunaíma, filme no qual dividíamos o personagem, que estabeleceu vínculos definitivos, intimidade e cumplicidade. No começo,  foi difícil  contracenar com meu ídolo, principalmente numa cena em que eu devia bater na cabeça dele, para que ela ficasse chata como a de um nordestino, enquanto dizia: “cresce logo, meu filho,que é prá ir prá São Paulo ganhar muito dinheiro”. Mas eu batia timidamente, Joaquim reclamava da falta de energia até que o próprio Otelo resolveu o impasse: “Você leu o roteiro, não leu? Está escrito para bater, então bata, mas bata com força mesmo, senão fica falso!” Tomei coragem, dei-lhe uns tapões na cuca, e isso selou definitivamente uma grande amizade.

                     Em nossas viagens com Macunaíma cantávamos uma música composta por ele, com citação do Praça Onze, do Herivelto Martins e que nunca foi gravada. Um inédito que aqui vai para recordar mais uma vez o enorme Grande Otelo.
Fazer Carnaval com quem
Olho e não vejo ninguém
Dodô (?) desapareceu
Claudionor foi embora
E Laurindo morreu .

Saudades do Carnaval de 43
Se eu pudesse
Eu cantava outra vez:
“Vão acabar com a praça Onze...”
Tempo bom,
Que não volta mais
Saudades
                                                           De outros carnavais.
Tempo bom
Que não volta mais
Saudades
De outros tempos iguais.
Tempo bom
Que não volta mais,
Saudades...

UMA AVENTURA VENEZIANA

                    Joaquim Pedro, o autor de Macunaíma, estava proibido de sair do Brasil por conta de uma manifestação contra a ditadura militar na abertura da reunião da OEA, no Hotel Glória. Então fomos convidados,  Dina Sfat, Otelo e eu, para representar o filme em Veneza. E lá fomos nós.
                    No aeroporto, um vaporeto nos transportaria até o hotel do festival.  Assim que descemos do avião e entramos no saguão do aeroporto uma voz potente e  bem enunciada começou a chamar pelos alto-falantes:

                    “ - Signore Grande Otelo!...Signore Grande Otelo!   
                  E já começava um zum zum zum, uma certa agitação. Mas não foi difícil entender o que estava acontecendo. Afinal, o Otelo de Shakespeare era conhecido como o Mouro de Veneza e quatro séculos depois estava ele de volta, ao que parece com todas as honras, dada a solenidade com que era chamado.
          Signore Grande Otelo...rivolgersi al posto de informazioni...
               Aumentava a curiosidade e o balcão de informações ia ficando cada vez mais cheio de passageiros que olhavam para cima, talvez imaginando um Otelo enorme, taurino, gigantesco. 
               Signore Grande Otelo!!!...Ninguém olhava para baixo onde, entre Dina e eu, caminhava a passos tão largos quanto podia, o pequeno Grande Otelo. E olhem que ele vestia um casaco vermelho, calça azul, chapéu  verde com uma pluma multi-colorida. Chegando ao balcão, Otelo, na ponta dos pés, exclamou com voz aguda:
           - Sono io...
           - Comm’e?
     - Sono io il Signore Grande Otelo...E com plena voz, reafirmou:  - Il Signore Grande Otelo, sono io!...
                    E aí foi um gargalheiro, e depois aplausos e já foram nos conduzindo para o embarcadouro, e foi com um salto esperto de Macunaíma que Otelo se aboletou no motoscaffo. Como um bom augúrio, depois de quatro séculos, o grande Otelo voltava a Veneza.  
                    E mais uma vez aplausos e risos acompanhavam nosso Otelo, amado por todos os que conviveram com ele. Que o digam minhas filhas, que adoravam tê-lo em nossa casa, que com seu metro e meio de altura, mais do que uma simples pessoa, era para elas um elfo, um gnomo, um duende encantado e encantador. 
                       Tempo bom
                           Que não volta mais
                                     Saudades
De outros tempos iguais.
            Tempo bom
               Que não volta mais,
                               Saudades...

                                                                  Paulo José