quarta-feira, 23 de julho de 2014

O MOURO DE VENEZA


                     Aqui vou eu, como sempre atrasado no uso das formas contemporâneas de comunicação. Após mais de 20 anos de resistência às redes sociais, twitters, facebooks, sites, blogs, instagrams e outras expressões de uso corrente, entrego os pontos e dou início a este blog que me fará menos secreto e mais parlapatão e cheio de prosa, com fingida intimidade como se esta página fosse apenas mais uma no meu cotidiano de blogueiro. Aproveito a deixa para diariamente ir postando textos, crônicas, perfís de pessoas queridas, opiniões esculhambativas carregadas  do mau humor da leitura dos jornais no café da manhã. 
                   
                         Muitos textos serão novos, escritos no dia de sua 
publicação, outros estavam em repouso no fundo do computador, escapando assim de sua provável morte por vírus, como por 
exemplo esta crônica amorosa, escrita em 2007, sobre meu querido Sebastião Prata,
                           UM CERTO GRANDE OTELO

                    Em toda minha vida cruzei várias vezes com Sebastião  Bernardes de Souza Prata. Mais do que encontros casuais foram aproximações que nos tornaram cada vez mais Amigos, assim, com A maiúsculo.  Que o digam minhas filhas, que adoravam tê-lo em nossa casa, que com seu metro e meio de altura, mais do que uma simples pessoa, era para elas um elfo, um gnomo, um duende encantado e encantador.
                     Eu já o conhecia como ator de Moleque Tião, como autor de diversos sambas em parceria com Herivelto Martins e outros; sabia que filmara com Orson Welles, que declarara ser ele o maior ator negro do mundo, até que um belo dia, excursionando pelo sul do Brasil, Otelo deu com os costados em Bagé! 
  
                    MEU PRIMEIRO ENCONTRO

                    O ano? Lá por 49 ou 50. O local?  Bagé, Cine Capitólio, a matinê de um domingo especial composto por palco e tela, como anunciava o serviço de alto-falantes A Voz de Bagé. Na tela, “Alô, Alô Carnaval”. No palco, alguns artistas da Rádio Nacional, e a principal atração, o inigualáaaaavel, o insuperáaaaaavel, o Graaaande Otelo! O inigualáaavel entrou em cena jogando io-iô, mania nacional na época, e depois de ovacionado, lançou um desafio: "um prêmio de mil cruzeiros para quem fizesse com o io-iô tudo o que ele faria e algo mais, que ele 
não pudesse fazer! Logo  um garoto subiu ao palco, desafiador. Na platéia, grande expectativa.
                    Para começar, Otelo fez um simples desce-e-sobe que o desafiante imitou. Aos poucos os movimentos foram ficando mais complexos e o bageense respondia tal-e-qual. O povo delirava. Otelo errou um movimento e o bageense imitou o erro. A platéia toda no “já-ganhou”. O barbante do io-iô de Otelo rebentou. Suspense. Imperturbável, tira outro io-iô do bolso, e começa rolamentos do io-iô pelo chão, que agora parecia um cachorro amestrado. Otelo dizia “Vai!” e o io-iô ia, ordenava ‘Pára!” e o bichinho ficava parado, imóvel. Otelo dizia “Vem!” e o cachorrinho, digo, o io-iô, voltava correndo e ia se aninhar na sua mão. E depois parecia um pássaro que voava em círculos ao redor de sua cabeça. A essa altura o desafiante já havia desaparecido. Até que o teatro ficou às escuras, o io-iô ganhava luzes e cores, noite estrelada, e surgiu um segundo io-iô, ainda mais luminoso, e estrelas cadentes, cometas, fogos de artifício saiam das mãos  mágicas daquele pequeno duende que ainda iria deslumbrar tantos adolescentes em tantos Bagés por todo este Brasil a fora.
No dia seguinte, no colégio onde eu estudava, as aulas foram suspensas e fomos todos reunidos no teatro, onde o Padre Diretor orgulhosamente anunciou a presença de um ex-aluno que se tornara um dos maiores artistas de nosso país. E quem entra no palco? Claro que Grande Otelo! E junto com a admiração apareceu a identificação. Como ele, eu era aluno salesiano, como ele eu me apresentava em todos os eventos do colégio, declamando, cantando e representando. Naquele dia, o Moleque Tião havia inoculado em mim o vírus do palco como espaço natural para se viver.                                         Muitas outras vezes nos cruzamos mas foi Macunaíma, filme no qual dividíamos o personagem, que estabeleceu vínculos definitivos, intimidade e cumplicidade. No começo,  foi difícil  contracenar com meu ídolo, principalmente numa cena em que eu devia bater na cabeça dele, para que ela ficasse chata como a de um nordestino, enquanto dizia: “cresce logo, meu filho,que é prá ir prá São Paulo ganhar muito dinheiro”. Mas eu batia timidamente, Joaquim reclamava da falta de energia até que o próprio Otelo resolveu o impasse: “Você leu o roteiro, não leu? Está escrito para bater, então bata, mas bata com força mesmo, senão fica falso!” Tomei coragem, dei-lhe uns tapões na cuca, e isso selou definitivamente uma grande amizade.

                     Em nossas viagens com Macunaíma cantávamos uma música composta por ele, com citação do Praça Onze, do Herivelto Martins e que nunca foi gravada. Um inédito que aqui vai para recordar mais uma vez o enorme Grande Otelo.
Fazer Carnaval com quem
Olho e não vejo ninguém
Dodô (?) desapareceu
Claudionor foi embora
E Laurindo morreu .

Saudades do Carnaval de 43
Se eu pudesse
Eu cantava outra vez:
“Vão acabar com a praça Onze...”
Tempo bom,
Que não volta mais
Saudades
                                                           De outros carnavais.
Tempo bom
Que não volta mais
Saudades
De outros tempos iguais.
Tempo bom
Que não volta mais,
Saudades...

UMA AVENTURA VENEZIANA

                    Joaquim Pedro, o autor de Macunaíma, estava proibido de sair do Brasil por conta de uma manifestação contra a ditadura militar na abertura da reunião da OEA, no Hotel Glória. Então fomos convidados,  Dina Sfat, Otelo e eu, para representar o filme em Veneza. E lá fomos nós.
                    No aeroporto, um vaporeto nos transportaria até o hotel do festival.  Assim que descemos do avião e entramos no saguão do aeroporto uma voz potente e  bem enunciada começou a chamar pelos alto-falantes:

                    “ - Signore Grande Otelo!...Signore Grande Otelo!   
                  E já começava um zum zum zum, uma certa agitação. Mas não foi difícil entender o que estava acontecendo. Afinal, o Otelo de Shakespeare era conhecido como o Mouro de Veneza e quatro séculos depois estava ele de volta, ao que parece com todas as honras, dada a solenidade com que era chamado.
          Signore Grande Otelo...rivolgersi al posto de informazioni...
               Aumentava a curiosidade e o balcão de informações ia ficando cada vez mais cheio de passageiros que olhavam para cima, talvez imaginando um Otelo enorme, taurino, gigantesco. 
               Signore Grande Otelo!!!...Ninguém olhava para baixo onde, entre Dina e eu, caminhava a passos tão largos quanto podia, o pequeno Grande Otelo. E olhem que ele vestia um casaco vermelho, calça azul, chapéu  verde com uma pluma multi-colorida. Chegando ao balcão, Otelo, na ponta dos pés, exclamou com voz aguda:
           - Sono io...
           - Comm’e?
     - Sono io il Signore Grande Otelo...E com plena voz, reafirmou:  - Il Signore Grande Otelo, sono io!...
                    E aí foi um gargalheiro, e depois aplausos e já foram nos conduzindo para o embarcadouro, e foi com um salto esperto de Macunaíma que Otelo se aboletou no motoscaffo. Como um bom augúrio, depois de quatro séculos, o grande Otelo voltava a Veneza.  
                    E mais uma vez aplausos e risos acompanhavam nosso Otelo, amado por todos os que conviveram com ele. Que o digam minhas filhas, que adoravam tê-lo em nossa casa, que com seu metro e meio de altura, mais do que uma simples pessoa, era para elas um elfo, um gnomo, um duende encantado e encantador. 
                       Tempo bom
                           Que não volta mais
                                     Saudades
De outros tempos iguais.
            Tempo bom
               Que não volta mais,
                               Saudades...

                                                                  Paulo José

6 comentários:

  1. Que maravilha suas historias aqui escritas! Vou lembrando de outras. Enquanto o Otelo era o gnomo o Jonh Neschlin era um gigante. Abaixava a cabeça para passar na porta de entrada de casa e tinha as maiores mãos que eu já tinha visto na vida! Inesquecível! Obrigada pai, pelo privilégio de conviver com pessoas tão especiais.

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  2. Que jeito lindo de fazer um retrato - com palavras - mas de imagens tão coloridas!

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  3. viva o Grande Sebastião Prata Otelo! viva o Grande Pablito José!

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  4. Adorei!!Meus dias vão ser mais alegres!!

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  5. Oba, Espanhol! Que lindo! E que boas e belas histórias ainda vem por aí! Muito bom te ouvir e estar um pouco mais perto. beijos imensos com saudades

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  6. Prezado Paulo José,

    Muito grato por sua generosidade em compartilhar um pouco de suas tantas e tantas histórias!

    Será um prazer e aprendizado gigantescos apreender e aprender um pouco mais de suas experiências e ideias!

    Terá aqui um fiel leitor!

    Com todo o respeito deste seu fã!

    Obrigado!

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